A aceitação da lei do mais forte
A lei do mais forte é aquela que funciona pela força e está isenta de validação coletiva que seja resultado de reflexão, debate e construção conjunta de pensamento a longo prazo, porém apoia-se nesse mesmo coletivo para autorizar – através da pouca ou nenhuma intervenção – seus abusos.
A autorização social da violência é aquela que reforça ações de violência através do silêncio e do não-posicionamento contrário a essa violência, inserida, muitas vezes, em uma rede de benefícios recebidos da pessoa que violenta ou de sua rede de suporte, funcionando como uma espécie de suporte às pessoas que não se posicionam e que por isso, desejam manter esse contexto. Se for necessário aceitar violências contra outras pessoas para manter benefícios, elas optarão por essa via. Porém, não objetar a violência fortifica a violência.
Há a situação na qual não se questiona a violência por uma questão de segurança imediata. A pessoa que violenta pode se voltar contra aquela ou aquele que questiona. Ainda assim, quanto maior o número de pessoas que questiona, maior a segurança coletiva, tendo em vista a correlação de forças. Sendo assim, essa situação apresenta uma solução e esta, demanda o mínimo de organização coletiva para concretiza-la.
A pouca intervenção contrária à violência não autoriza a violência, porém expressa esforço insuficiente para detê-la. Há algumas possibilidades que explicam esse comportamento, uma delas se encaixa no mesmo argumento da rede de benefícios apontado acima. Se explicita contrariedade à violência, mas apenas na medida que não se coloca em risco esses benefícios.
Há também a situação na qual se evita ir mais longe com o discurso e ação de questionamento devido à assimetria de forças entre pessoa que violenta e grupo de pessoas que questiona. A pessoa que violenta talvez possua armas ou seja fisicamente muito mais forte que o grupo ao seu redor. Talvez ela tenha uma rede de suporte externo que seria possível uma ameaça contra questionadores.
É provável que a pessoa que violenta reaja com frequência de forma desproporcional a críticas, respondendo com mais violência e desgastando a capacidade de reação individual ou coletiva, sendo componente da tática do agressor ou da agressora e gerando a interpretação de que tal crítica seria uma violência e, por isso, não deveria existir. Essa é uma ação de manipulação da interpretação e que tem como objetivo neutralizar questionamentos e desencorajar futuras objeções.
Em todas as situações – com exceção do segundo exemplo, onde, não se questiona devido a segurança imediata –, há retenção da crítica e de ações incisivas e esse posicionamento gera, em muitos casos, prolongamento ou recorrência da violência contra mais pessoas. Mesmo que não desencadeie essas situações, o simples fato da não cobrança da responsabilização da pessoa ou grupo que violenta gera a falta de reparação da vítima, o que é também violência.
A não ação diretamente contra a violência, ou seja, a aceitação da lei do mais forte tonifica a violência e encoraja a pessoa ou o grupo que violenta a continuar.
Pessoas ou grupos fora de controle devem ser contidos, se não através do diálogo, através da força, nos casos em que vidas estão em risco. No entanto, há muitas etapas possíveis antes dessa. Seja através da força ou do diálogo que se faça o cessar da violência, pessoas ou grupos que violentam devem ser responsabilizados pelos seus atos. O grau da violência define o tipo de responsabilização. Às pessoas e grupos que violentam devem ser reservados seu direito da reflexão e avaliação coletiva sobre seus atos, balizados por acordos coletivos, direito este negado por elas às suas vítimas. Ainda que a força tenha sido utilizada para interromper a violência que cometiam, ainda assim, violadores terão direito à vida. Vida ou qualidade de vida que negaram às suas vítimas. Vida que deve ser vivida em acordo com a reflexão sobre seus atos passados e comprometimento com a transformação de comportamento, acompanhada de restrições ou sanções que marcam o não direito a violentar.
A rede que estrutura a aceitação da lei do mais forte deve ser questionada de modo a não mais vigorar. Existem possibilidades que conduzem a caminhos de construção coletiva de vidas dignas para todos e estes exigem enfrentamentos que, caso adiados, fortalecerão os contextos de manutenção da violência e privilégio de pessoas e grupos que desrespeitam. É preciso cessar a violência e é preciso responsabilização por parte dos que violentam. Qualquer caminho alternativo e que adie essas ações servirá apenas para seguir aprofundando desigualdades, diluindo catástrofes no tempo e gerando desastres e emergências sempre por vir, ceifando vidas aos poucos ou em massa.
Essa reflexão é válida para o extermínio que ocorre hoje em Gaza, perpetrado pelo governo e exército de Israel, e o posicionamento ou falta de posicionamento de outros países frente a destruição do povo palestino. Vale também para outras situações de violência, em diferentes níveis de quantidade, intensidade, escala e elementos envolvidos.
Texto curto da seção Breves de autoria de Daniela Alvares Beskow, escritora e cientista política
03 de novembro de 2023
Palavra e Meia Semanal
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