Profissionais da saúde e a mística que permite que cobrem caro e desrespeitem pacientes
Existe uma mística em torno de médicos e médicas. Eles lidam com a cura, salvam vidas, eliminam doenças e conduzem a recuperação da saúde. Em algumas culturas já foram ou são entendidos a partir de uma aproximação com o sagrado ou divino, dado o conhecimento de livrar temporariamente da morte. As profissões que lidam com a saúde são extremamente importantes, mas não são mais importantes do que outras igualmente relevantes para o funcionamento da sociedade: lixeiros, professores, comerciantes, agricultores, engenheiros, matemáticos, cientistas sociais, escritores, artistas, jornalistas, e assim por diante. Toda profissão contribui de forma diferente para o coletivo, algumas sem as quais seria muito difícil viver e não é apenas dos médicos que estamos falando.
A hipervalorização de médicos e médicas se origina tanto na sociedade como neles mesmos e ambos os elementos contribuem para os altos custos propostos por esses profissionais como pagamento de sua hora de trabalho, no caso dos que trabalham na área privada. Essa reflexão se estende para os profissionais da odontologia e psicoterapia, que são também profissionais da aŕea da saúde. Não é raro encontrar atendimentos com valores de R$300,00, R$400,00, R$500,00 a hora, mesmo nos casos em que ocorrem com frequência semanal, como no caso da terapia. Ao serem questionados sobre valores, alguns profissionais muitas vezes indicam que a paciente procure atendimentos “sociais” com valores acessíveis ou estudantes de graduação que estejam em fase treinamento e que possam atender de forma gratuita. Como se a saúde em si não fosse uma questão social e como se a maioria da população, que muitas vezes fica à mercê das longas esperas nas filas do SUS merecesse apenas ser atendida por pessoas ainda sem diploma ou instituições com consciência pesada que reservam uma tarde da semana para os despossuídos, enquanto recebem altas quantias no restante dos dias de trabalho, ou seja, não propondo uma mudança estrutural nas formas de cobrança e disponibilidade de serviços. Uma tarde semanal para atendimentos “sociais” não resolve problemas estruturais e continua reforçando a saúde como um serviço destinado às elites, até porque a maioria da população no Brasil é composta de pessoas com baixa renda e a minoria, com alta renda.
Dificilmente um linguista cobraria R$500,00 a hora de sua aula ou de sua consultoria sobre o assunto. O mesmo sobre um professor de pilates ou recreação infantil. Esse mesmo médico que cobra R$500,00 a hora de sua consulta iria à falência caso pagasse R$500,00 por toda a hora de alguns importantes serviços que consome, como uma aula de natação, a consultoria de uma arquiteta ou mesmo o livro de literatura para seus filhos ou a cesta de legumes e verduras semanais. Quem dirá o serviço de limpeza de sua própria casa, provavelmente realizado por terceiros. A maioria desses serviços e produtos derivam, assim como no caso da medicina, de muitos anos de estudo, pesquisa, empenho, trabalho e atualizações profissionais constantes. Porém não é para todas as profissões que são concedidas o direito de cobrar caríssimo.
A sobrevalorização monetária de certos segmentos da mão de obra da saúde é um dos elementos que estrutura a mística em torno dos médicos. O primeiro, como já dito, é a habilidade em conhecer o corpo em detalhes e salvar vidas, sendo este conhecimento em específico que os diferencia dos demais. Como já dito, todo conhecimento é importante e, assim como a linguista não sabe ou sabe pouco sobre doenças, o médico não sabe ou sabe pouco sobre línguas nativas e sua importância para a manutenção das culturas indígenas no Brasil, por exemplo. Toda profissão complexa requer longa formação e atualizações constantes. Há também profissões que requerem formações mais simples e curtas, como as dos profissionais da limpeza, mas que, ainda assim, são essenciais para a sociedade. Seu valor está menos no tempo requerido para a formação e treinamento do profissional e mais na importância da profissão para o funcionamento social. Sem a retirada do lixo das ruas, a sujeira se acumula rapidamente e doenças se espalham, contribuindo para o caos. Sem limpeza e manutenção dos prédios públicos, seria impossível esse mesmo médico realizar sua atividade. A limpeza é uma das atividades mais importantes na sociedade e uma das mais mal pagas e desvalorizadas. É um paradoxo que enquanto sociedade, devemos resolver. Os profissionais da limpeza deveriam ter os salários mais altos, inclusive porque é uma atividade muitas vezes insalubre e certamente incômoda para todos os que a realizam. Debate nem sempre colocado é também o fato de que toda pessoa deveria ser responsável por sua própria sujeira em seus espaços privados. Certamente limpar a casa dos outros não deve ter sido o sonho de profissão de empregadas domésticas. Não é “um trabalho como outro qualquer”, envolve se responsabilizar pelos detritos de outros adultos que por sua vez, tem a plena capacidade de limpar por si próprios.
Temos então alguns elementos para o debate, a hipervalorização de certos conhecimentos em detrimento de outros e a sobrevalorização monetária de certas profissões em detrimento de outras. Afinal, para existir hipervalorização de uns há de existir subvalorização de outros e essa correlação de forças se traduz em hierarquia. O cenário oposto seria a não hierarquia, ou seja, a justa valorização e remuneração de todas as profissões, o que não ocorre onde há regimes de poder, como, por exemplo, o capitalismo, o racismo, o patriarcado e outros. Regimes de poder geram desigualdades simbólicas e materiais. A violência é também um regime de poder, ideia que venho defendendo há algum tempo e que pode ser conferida nas minhas publicações. Esse regime, assim como os outros, reforça outros regimes e todos fortalecem as estruturas de desrespeito, dominação, exploração e desigualdades.
O profissional da saúde, já inserido em todos os regimes de poder existentes e partindo da mística que atribui a si um poder maior ou melhor em relação à outras profissões ou mesmo pessoas, está situado em um território simbólico que lhe permite agir sobre o outro – durante a consulta, realização de exames, procedimentos e cirurgias – de forma invasiva, desrespeitosa e sobrepondo sua vontade às demais. O contexto social facilita que esse profissional da saúde se sinta no direito de agir por conta própria, ainda que tais situações envolvam mais de uma pessoa. O agir sozinho implica em explicar de forma rasa questões referentes à saúde do paciente sem que este tenha direito à voz ou questionamentos; realizar exames ou procedimentos sem explicar previamente a sequência de ações preparatórias ao paciente; manipular o corpo do ou da paciente de forma brusca ou agressiva e depois não se desculpar pelo ocorrido; propor tratamentos, medicamentos ou cirurgias sem explicar em detalhes a razão de tais decisões; interromper tratamentos porque assim julga necessário, sem que o paciente tenha o espaço de contestação; expressar irritação quando o paciente questiona, duvida, reflete conjuntamente sobre sua própria condição. O médico ou a médica se percebe no direito de agir sozinho e na sequência da construção do seu autopoder e poder percebido e, em parte legitimado socialmente, não admite ser questionado.
Não admitir ser questionado é sinal de que o médico ou a médica entende ocupar um espaço coletivo onde apenas ele tem poder de reflexão e decisão. De acordo com essa postura, sua soberania iria além de sua própria pessoa, mas abarcaria os corpos e opiniões de outras pessoas, que deveriam permanecer quietas sob o risco de punição, agressão verbal ou física, humilhações. Não raro médicos têm ataques de raiva ou comportamento irritadiço quando questionados por seus pacientes: uma dúvida, uma sugestão, uma reflexão em torno de outras opções de tratamento são ingredientes passíveis de gerar revolta no profissional da saúde, que se percebe no direito de não prestar contas.
A percepção de que não há necessidade de prestar contas, quando se trata de contextos coletivos, está fincada em regimes de poder, onde a violência simbólica frequentemente resulta em violência psicológica e material. O pedestal onde o próprio médico se posiciona, auxiliado pelas estruturas sociais que reforçam as hierarquias, permite que ele comande, porém não tenha que justificar suas ações. O pedestal funciona como um escudo, que o protege de qualquer tipo de intervenção em sua conduta. Esse escudo certamente o protege de ser cobrado por violências graves cometidas em consultórios, como a violência sexual, tão recorrente contra pacientes mulheres.
Essa postura autoritária de médicos e médicas resulta em contextos de tratamento de saúde com alto nível de estresse para pacientes. Ao lidar constantemente com agressões vindas de profissionais da saúde após perguntarem, refletirem e proporem ideias sobre o próprio tratamento, exame ou cirurgia são empurrados para um ambiente hostil e que incentiva a ignorância sobre a própria saúde. Através desse comportamento profissional, são informados de que não devem questionar e que devem aceitar incondicionalmente tudo que o médico falar ou aconselhar. Esse contexto, além de ser violento, acoberta possíveis erros ou falhas médicas e é caracterizado também da utilização de linguagem difícil e sem explicações aos demais. Violência médica existe, é frequente e deve ser questionada e quando necessário, denunciada. Posturas e conselhos de médicos e médicas devem estar sujeitos à avaliação de outros profissionais da área e também do público.
Cabe à sociedade reavaliar a hipervalorização de certas profissões, ela ocorre também em outras áreas e gera uma repartição desigual da renda entre os membros da sociedade. Protocolos de comportamento de profissionais da saúde durante atendimentos, realização de exames e de procedimentos e cirurgias, também devem ser implementados a partir da ótica do tratamento sem nenhum tipo de violência ou desrespeito de forma a gerar ambientes de trabalho respeitosos para com pacientes. Políticas públicas que caminham junto à processos educativos e de conscientização coletiva caminhando juntos em direção à sociedades mais justas e de ampliação de recursos e bem estar para todos e todas.
Texto curto da seção Breves de autoria de Daniela Alvares Beskow, escritora e cientista política
27 de novembro de 2023
Palavra e Meia Semanal
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