Quando o afeto neblina a visão

Quando o afeto neblina a visão

Afeto é elemento necessário para a existência. Relações com pessoas que cuidam, se preocupam, acolhem, se alegram junto, ajudam quando é preciso, se dispõem ao encontro, à construção delicada e no detalhe do relacional é extremamente importante para o viver. O afeto acrescenta e transforma a sobrevivência em possibilidade de felicidade construída conjuntamente, ou seja, multiplica as possibilidades do ser individual, que, por si só, já é múltiplo, diverso e potente, mas também resultado do coletivo e da vida social construída no agora e, historicamente, ainda que entendido em sua singularidade ou solidão.

O afeto fornece reconhecimento de si no outro, na outra, o que contribui também para a construção e fortalecimento da estrutura individual. O compartilhamento de emoções na prática processual do afeto é aprendizado, fala e escuta de todos os lados, possibilidade de entender o que é o carinho, o companheirismo.

Afeto possibilita tranquilidade, pois surge da confiança, que proporciona apoio, suporte, segurança. Afeto é bom! Quem classificaria o afeto como algo negativo, tirando-lhe a potência do encontro, da alegria, da relação cuidadosamente construída com a outra, o outro?

O afeto, por si só, não é negativo.

Há, porém, um problema que está em um dos efeitos que o afeto pode proporcionar, que é a sensação anestesiante. Anestesia é necessária, porém, de vez em quando, em momentos em que é insuportável ou muito difícil sentir dor. Anestesia é um mecanismo importante de defesa em muitas situações. Muitas vezes é preciso evitar a dor para enfrentar o problema posteriormente, a seguir do fortalecimento necessário. Essa é uma estratégia que mantém o corpo em ritmo de aprendizagem, em estado dinâmico de observação, descanso, avaliação, reflexão e ação alternados. Pausas são importantes para reestabelecer a força e redelinear formas de fazer no tempo e espaço. A pausa é elemento essencial da estratégia. A anestesia não é um problema, e, sim, a anestesia constante, ininterrupta, a qualidade de estar que bloqueia a atenção e os sentidos plenos.

O estabelecimento de afeto enquanto negação da realidade tende a gerar um corpo alienado do ambiente e, logo, com pouco desenvolvimento de ferramentas para solucionar problemas. A busca do afeto em troca do isolamento dos desafios inerentes à realidade gera conforto a curto prazo e, como dito, estado necessário temporariamente. A permanência no estado de descanso, porém resulta em um fim em si mesmo que deteriora a capacidade de ciência, ou seja, visão e entendimento do que se passa ao redor.

As estruturas atuais de afeto, na maioria das sociedades, estão estabelecidas no acomodamento individual das pessoas envolvidas nas estruturas coletivas que tecem nos vários ambientes sociais: família, círculo de amizades, contextos de proximidade de trabalho e outros. Redes de proteção e relações coletivas necessárias e importantes, mas, que tendem ao isolamento do coletivo, em uma tendência à proteção em detrimento da cooperação. Exilando-se do desafio coletivo cotidiano, não apenas em termos de pessoas, mas de situações e diversidade de práticas, distanciando-se do contato com a multiplicidade, o olhar empobrece, diminui, reduz em habilidade. O entorno se torna uma massa homogênea sem detalhe, apenas um todo do qual se defender, sem suas importantes e interessantes especificidades, seus pequenos brilhos e formas, suas várias partes, componentes, frações, cada qual com sua singularidade. A realidade coletiva se torna uma neblina na qual é difícil transitar.

O entorno passa a ser interpretado apenas como algo aversivo e, ainda que seja em muitos contextos, nas diversas formas de relação com ele surge a possibilidade de transformação, mesmo que de forma indireta, distante ou a longo prazo. O sistema de afeto que nega o entorno transforma relações em prisões, coletivos locais em sistemas fechados, apoio coletivo em insegurança individual. Afeto que sequestra a autonomia individual é um afeto egoísta que produz medo e inabilidade para a vida.

O afeto se faz necessário, porém aquele que impulsiona para o mundo e não o que impele ao estado de dormência constante. Afeto construtivo não cria neblina, mas proporciona ferramentas para caminhar por ela até que se chegue, segura, ao final.

Texto curto da seção Breves de autoria de Daniela Alvares Beskow

13 de setembro de 2023

Palavra e Meia Semanal

Acompanhe: @_palavraemeia

Em breve, campanha de assinaturas!