Violência se resolve com justiça e não com terapia
Há um pensamento corrente que defende que pessoas agressoras deveriam se encontrar com suas vítimas em um espaço terapêutico com o objetivo de “resolverem a situação” de violência que ocorreu ou que esteja ocorrendo. Segundo esse pensamento, a conversa entre agressor/agressora e vítima sob a orientação de um profissional da psicologia seria uma ferramenta de reflexão coletiva sobre o ocorrido ou sobre a relação em curso, de modo a ouvir ambas as partes e promover um entendimento sobre a situação, o que supostamente amenizaria os efeitos da violência sob a vítima – já que ela entenderia “o lado” da pessoa que a violentou – ou humanizaria o olhar da pessoa agressora sobre a vítima, pois esta compreenderia os efeitos danosos ocorridos sobre o outro após sua ação, o que supostamente levaria a uma mudança de comportamento.
Tal pensamento, caso praticado enquanto uma suposta solução para situações de violência, é não apenas equivocado, como danoso para a vítima, ao mesmo tempo não resolvendo casos de violência, como também prolongando-os.
O equívoco ocorre devido ao fato de que a solução para a violência é a eliminação da violência e esta ocorre através de medidas práticas e objetivas a nível coletivo ou individual enquanto elemento inserido no espaço social. A investigação subjetiva do indivíduo é ferramenta importante para o cotidiano, mas não deve substituir o espaço formal ou informal de processos coletivos e políticas públicas e justiça frente a casos de violência. São dois campos distintos, ainda que ambos importantes para a vida em sociedade. Ademais, promover o encontro entre agressor ou agressora e vítima em um espaço para destrinchar a intimidade é simplesmente uma continuidade da violência, tendo em vista que promove o acesso da pessoa agressora ao espaço da vítima, invadindo sua privacidade, sua proteção corporal e simbólica, em nome de uma falsa reflexão que poderia levar a uma reconciliação. Se a vítima deseja ou não continuar relações sociais com pessoas que a agrediram – após os necessários processos de justiça – esta ação se faz enquanto escolha individual da vítima, que não deve ser submetida à chantagem terapêutica de fazê-lo através da exposição de sua intimidade ao agressor ou agressora mediada por um profissional.
Terapias individuais – tanto para a pessoa agressora para rever o seu comportamento e entender as falhas de suas ações, como para a vítima, como o objetivo de um apoio externo para auxiliá-la a se recuperar e seguir com sua vida – são importantes enquanto ferramentas da subjetividade, mas não são equivalentes a resoluções de situações de violência.
A vida em coletivo requer respeito à vida e às pessoas e quando a violência ocorre, o primeiro passo a se tomar é a responsabilização da pessoa que violentou sobre suas ações e – importante – esta apenas ocorre quando as pessoas ao redor se manifestam contrariamente à violência, chamando a atenção da pessoa agressora. Aqui não vale se juntar em grupo para constranger pessoas que não violentaram e que estão sendo acusadas a partir de distorções interpretativas, esta seria também uma violência.
Não se manifestar frente a violências que ocorrem com outras pessoas gera um efeito extremamente danoso para a sociedade, que é continuidade das violências, que passam a ocorrer com frequência, pois seus autores sabem que não serão responsabilizados e que não terão qualquer tipo de punição ou obrigação deles exigida.
Uma proposta para uma sequência de etapas da responsabilização para a pessoa agressora é a seguinte: refletir sobre a violência que cometeu; pedir desculpas para a vítima; se comprometer a não mais realizar violências de qualquer tipo; se retratar publicamente quando for o caso; deixar de frequentar os mesmos espaços coletivos que a vítima frequenta, caso for desejo da vítima; se reabilitar com o objetivo de transformar suas ações danosas; e ressarcir a vítima, quando for o caso, se necessário, financeiramente. Importante apontar a necessidade de uma processo anterior de apuração dos fatos para que não se corra o risco de injustiças a partir de informações não condizentes com a realidade. Até o momento não apresento nenhuma sugestão de direcionamento para esse momento prévio. As etapas apontadas podem ocorrer em qualquer tipo de agrupamento de pessoas, sem a necessidade de poderes de justiça institucionalizados, ainda assim, a justiça formal deve ser acionada quando for necessário. Para que ocorra a justa responsabilização de pessoas agressoras é necessário que uma pessoa ou um grupo de pessoas acompanhe o caso e conduza o processo de forma a garantir sucesso. Caso a pessoa agressora se recuse por espontânea vontade a se desculpar e a realizar as etapas necessárias para sua responsabilização há a justiça formal, que, com frequência, obriga pessoas que violentam a se desculpar publicamente e outras medidas, como a medida protetiva, em alguns casos. A justiça formal é um mecanismo possível e há diversos mecanismos da lei que versam sobre diferentes tipos de violência. Ressalta-se que ainda são necessários muitos aprimoramentos no entendimento e aplicação da lei em alguns tipos de violência, como a psicológica.
Tanto a justiça formal quanto a reflexão sobre responsabilização da violência em grupos de pessoas – redes de amizade, família, movimentos sociais e outros – necessitam de muito aprimoramento. Esse debate é muito precário em ambos os ambientes e leis são ainda insuficientes para dar conta do problema da violência nas relações interpessoais. É preciso aprimorar mecanismos.
A terapia, porém, não deve ser entendida enquanto substitutiva desses mecanismos em desenvolvimento. Terapia é local de autoconhecimento, aprimoramento e desenvolvimento e não de justiça social, coletiva ou individual, ainda que possa ser um dos elementos que auxiliem a rede de ações necessárias para se valerem direitos.
Texto curto da seção Breves de autoria de Daniela Alvares Beskow, escritora e cientista política
27 de novembro de 2023
Palavra e Meia Semanal
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