A socialização das mulheres para a violência psicológica

No patriarcado, homens são socializados para realizar todos os tipos de violência enquanto as mulheres são socializadas para praticar principalmente a violência psicológica, pois, na estrutura do regime de violência é a que permite ser realizada com mais facilidade pelas mulheres, em outras palavras, é a que resta para elas. Caso tivessem mais poder também praticariam com mais frequência as demais violências, que no contexto atual – e provavelmente no passado – praticam em menor escala.

Enquanto homens violentam tanto outros homens quanto mulheres, mulheres violentam principalmente outras mulheres. Uma das características da violência praticada por homens é o fato de ocorrer em larga escala, grande intensidade e através de uma correlação de forças onde as decisões de um pequeno número de homens inflige dano à um grande número de pessoas: vítimas de guerras; grandes camadas da população empobrecidas ou passando fome, vítimas de más gestões ou gestões deliberadas de políticos homens em manter a desigualdade econômica e social; mulheres vítimas de sistemas religiosos patriarcais; e outros exemplos. Violências praticadas e, mantidas também por um grande número de homens, ainda que nem sempre todos eles tenham tomado as decisões iniciais. A violência praticada por mulheres ocorre em escala e intensidade menores e ocorre principalmente em relações individuais ou em contextos de pequenos grupos e está presente nas estruturas de vivência cotidiana. Este tipo de violência é constante e não vitimiza grandes quantidades de mulheres de uma vez, ao contrário, vitimiza mulheres individuais em relações principalmente privadas. Aqui não se aplica os casos dos regimes de dominação como o racismo, o capitalismo e a heterossexualidade como norma, onde mulheres ou tomam decisões a respeito da violência contra grande número de mulheres de outros grupos – o que ocorre menos – ou então se beneficiam delas. Estamos falando sobre a violência de caráter psicológico existente no regime da violência, e que como todos os outros regimes se apoia nos demais regimes, o que reforça os vários sistemas de exploração e dominação. A violência psicológica cometida por uma mulher situada em um grupo privilegiado provavelmente será caracterizada pelos traços deste regime de dominação, como a violência psicológica de caráter homofóbico, racista ou classista. Ainda assim, este texto aborda a violência psicológica que não necessariamente está diretamente vinculada a outros regimes de dominação senão o regime da violência.

Espaços apenas entre mulheres são prato cheio para mulheres que exercem violência contra outras mulheres: não há o olhar regulador de fora, o árbitro, a testemunha isenta e, logo, mais possibilidade de ataque sem retaliação. Ao mesmo tempo que esses espaços constituem-se enquanto espaços de resistência e organização frente à violência masculina, não estão livres de serem locais onde ocorrem violências. É uma dicotomia que o movimento feminista vem pouco enfrentando. Ao invés de espaço pleno de solidariedade, muitas vezes se transforma em um gueto com poucas possibilidades de justiça interna e frequentemente propagando um discurso contrário à prática. Enquanto exalta a união e cooperação entre mulheres, reina a violência psicológica e o desrespeito, mediado por distorções interpretativas, alianças e relações de hierarquia entre pequenos grupos, impedindo a visualização e entendimento plenos da violência.

A prática da violência psicológica é um dos pilares da feminilidade, sendo essa uma ferramenta patriarcal de dominação das mulheres. Além de controlar e explorar os corpos das mulheres, a feminilidade ensina a não assertividade e na mulher que violenta, essa se transforma na violência psicológica, dadas as características em comum que partilham. Enquanto que a assertividade demanda posicionamento e enfrentamento direto e muitas vezes, imediato, a não assertividade e a violência psicológica são construídas através da relação indireta – dada a pouca possibilidade social de ações explícitas ao coletivo protagonizadas por mulheres nos regimes patriarcais – e também ao longo de um período mais extenso de tempo antes de muitas vezes se mostrar enquanto violência explícita. O ataque pode ser realizado após extensa avaliação da agressora sobre sua vítima, observando seus pontos fracos e sua rede de apoio, que provavelmente será minada através de uma série de ações que objetivam desestruturar a defesa ou recuperação da vítima.

A feminilidade ensina a contornar em vez de enfrentar e, na mulher que violenta, o contorno estará estruturado na violência, que passa a adquirir suas características, por exemplo, a aparente direção imprecisa, mas que frequentemente já tem seu caminho traçado desde o início, porém não se mostra diretamente devido à socialização para o caminho não-direto. A mulher é vítima da feminilidade, porém, no caso das mulheres que violentam, se utilizam do que resta dessa ferramenta, do que coube a elas na organização patriarcal, para uso próprio e para atingir quem consegue do grupo socialmente vulnerabilizado de que faz parte. Individualmente é a tentativa de conseguir algum tipo de poder no pouco espaço de valorização e ação social a que lhe foi destinada no cotidiano coletivo da sociedade.

A violência psicológica exercida por mulheres contra mulheres apenas será extinta com organização coletiva e questionamento dentro dos movimentos de mulheres, realizados a partir de estudo conjunto e dedicado sobre a violência, mas não apenas. É preciso processos de justiça interna em grupos entre semelhantes, dinâmicas que envolvam mulheres de fora e isentas que possam conduzir reflexões e avaliação sobre os ocorridos, evitando também que tais processos sejam apropriados por agressoras e sua rede de apoio dentro do grupo onde ocorreu a violência.

A violência praticada por mulheres deriva tanto do regime de violência – termo que cunhei ao longo de minha pesquisa sobre violência – como da adaptação da ferramenta patriarcal, a feminilidade enquanto dominação das mulheres, em meio alterado para violentar outras mulheres. Essa violência, assim como todas as outras, apenas será eliminada com formação e organização coletiva, empenho e intenção em construir territórios coletivos baseados na cooperação e no respeito. A socialização há de falhar, porém, dificilmente será obra do acaso.

Texto curto da seção Breves de autoria de Daniela Alvares Beskow, escritora e cientista política

22 de novembro de 2023

Palavra e Meia Semanal

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