Mulheres que reivindicam seus direitos são chatas. Homens são corajosos e prestativos
A crítica é antiga. Mulheres e homens com o mesmo comportamento são classificados de formas opostas pelo discurso coletivo – delineado predominantemente por homens – e reproduzido individualmente por homens e, muitas vezes, por mulheres.
A mulher ou as mulheres que reivindicam seus direitos, protestam contra injustiças, que dizem não a desrespeitos ou criticam homens que implementam políticas coletivas ruins – em movimentos sociais, associações de bairro, ambientes de trabalho, projetos estudantis, e assim por diante – são discursivamente sabotadas ao serem classificadas como inconvenientes, chatas, insistentes. É comum que o próprio homem criticado inicie os rumores, difamando mulheres que anteriormente o criticaram com argumentos. Entre homens, outros escutam a denominação pejorativa e não se posicionam contrariamente, ouvem em silêncio, riem ou concordam com seu parceiro desconhecido homem. “Pois é”, “tem que tomar cuidado”, “insuportável” e o clássico “ela é arrogante”. Em alguns casos, homens atacam mulheres verbalmente em público após serem criticados. Dificilmente outros homens o repreendem, não querem “escalar” o que classificam como “conflito”, quando o que ocorre é uma violência. Enquanto isso, bradam contra violências onde homens também são vítimas. As violências que atingem apenas ou predominantemente mulheres – especialmente as de caráter misógino, o que em geral são – dificilmente terão rechaço ou revolta organizada de homens. Homens em sua maioria não percebem a misoginia como algo que valha o esforço de se manifestar contra, inclusive porque estão o tempo inteiro se beneficiando desta forma de ódio e desrespeito estrutural contra as mulheres.
Situação oposta à de classificação pejorativa, ocorre com homens que protestam, reivindicam, explicitam injustiças e propõem ações contrárias a pessoas com as quais discordam. “Corajoso”, “dedicado”, “humilde”, “comunicativo”, “prestativo”, “confiável”, “justo”. Há quase um ar de nobreza em torno do homem que critica e propõe ideias ao coletivo, enquanto mulheres que fazem o mesmo são submetidas a diversos tipos de humilhação verbal e de comportamento agressivo, desdenhoso e desqualificador. Obstáculos diários que a socialização masculina impõe ao livre exercício da expressão de opiniões vindas de mulheres, dificultando sua presença e ação nos espaços coletivos, não apenas pela frequente agressão, mas também pelo não afastamento de agressores dos espaços coletivos onde mulheres ofendidas participam. As vítimas acabam por se afastar, perdendo tudo que ajudaram a construir em determinado agrupamento.
Há um padrão em homens em distorcer completamente ações e fatos de empenho feminino, transformando-os em histórias negativas inverídicas. São comportamentos imaturos que expressam a falta completa de disponibilidade para fazer política cotidiana e construção coletiva com mulheres. Mal-humorados e agressivos, não admitem ter que compartilhar os mesmos espaços de construção de práticas e ideias para a sociedade com mulheres. A mera presença de mulheres participativas – que não sejam secretárias, base silenciosa, massa de manobra ou mão de obra explorada nas tarefas de bastidores – gera incômodo. Não importa o que as mulheres críticas falem ou propõe, serão com frequência já de início tratadas com má vontade a partir de análises superficiais de suas ideias. Comumente um homem propõe a mesma coisa e é aplaudido, ou pior, propõe péssimas ações e é aclamado. A mulher participativa é vista com desconfiança, o homem participativo é visto com receptividade, afeto e respeito.
O tempo dos homens que participam em processos comunitários é “precioso”, o das mulheres sequer é computado. Dificilmente homens realizam tarefas que não promovem prestígio, ao contrário, estes, sim, “escalam” nas costas de mulheres e de seus trabalhos imprescindíveis. São trabalhos que permitem a manutenção de coletividades, porém, em sua maioria, de pouca influência em ideias e ações coletivas. Em movimentos sociais, por exemplo, homens exploram a mão de obra de mulheres em tarefas como secretariado de reuniões, entrega de panfletos, permanência em barraquinhas de materiais do movimento, design de cartazes, confecção de camisetas, organização de cronogramas, gerenciamento de grupos de Whatsapp, divulgação. Após as mulheres construírem a base do movimento, chamarem pessoas e fortalecerem o grupo e ter de alguma forma impulsionando-o socialmente, ou seja, após “construírem o palco”, homens sobem para discursar, se apropriando de meses de trabalho de mulheres para depois brilharem sozinhos ou com seus parceiros homens em frente às câmeras, assinarem documentos importantes, comporem grupos de trabalho com reconhecimento público ou participarem de reuniões com pessoas de relevo. Poucas são as exceções da classe masculina nesse padrão.
O que dizer de homens que cometem irregularidades em suas casas e são chamados a atenção por vizinhas. Muitas vezes, reagem aos gritos, ofendem, quando não ameaçam agredir fisicamente. Todas as pessoas têm o direito de expressar opiniões e protestar pacificamente contra injustiças. Porém, na prática, esse direito não parece pertencer às mulheres, desencorajadas diariamente a dizer não a assédios, desestimuladas a se posicionarem contrariamente à violências contra outras mulheres nos espaços públicos, questionarem irregularidades, desrespeitos e incômodos vindos de transeuntes, vizinhos, funcionários em comércio ou qualquer homem nos espaços públicos ou privados, em ações que as estejam afetando direta ou indiretamente. Violências que estejam interferindo no seu direito de bem-estar no transporte público, no direito de ir e vir nas ruas, agressões contra sua casa ou seu próprio corpo. Toda revolta de uma mulher vitimizada por qualquer tipo de desrespeito será recebida com agressão vinda de homens, pisando dia a dia em mulheres questionadoras e que reivindicam seus direitos, reforçando paulatinamente que mulheres devem aceitar violência ou se manter longe dos espaços de decisão coletiva.
Não aceitaremos, seguiremos decidindo coletivamente e dizendo não à violência e ao desrespeito.
Daniela Alvares Beskow
24 de fevereiro de 2024