A lógica da seita, parte 3

“Confie em mim”

Outra característica marcante dos líderes que agem a partir da lógica da seita é o convencimento emocional dos integrantes do grupo no sentido de que devem confiar neles e crer que tomarão boas decisões para o grupo. A ideia de confiança, dessa forma estabelecida, é construída através da crença, da fé, no acreditar sem a necessidade de comprovação. Há uma esperança que é gerada a partir da difusão de associações positivas com os líderes que, reforçando esses elementos através do sistema de controle e manipulação da informação associada às práticas centralizadoras, é utilizada enquanto sustentador do presente acrítico e garantidor do futuro. Líderes na lógica da seita estão assentados no planejamento, suas ações tem como objetivo perpetuar o sistema coletivo que os assegura poder e visibilidade, seja para a continuação do grupo, seja para sua projeção futura no exterior, caso o grupo se dissolva.

“Queremos o melhor para todos” e outras afirmações vagas constituem a prática da confiança que opera a partir da lógica da seita. A não exatidão é a chave desse pensamento, justamente porque os líderes desse tipo de sistema organizacional não são afeitos a prestar contas. A transparência, um dos pilares das organizações que prezam pela democracia, cooperação e liberdade, é fator essencial para a comunicação entre líderes e público, gestores e sociedade, pois estabelece um canal de comunicação de duas vias entre essas duas partes. Há comunicação das decisões e ideias que então são subordinadas ao escrutínio coletivo que então retorna aos tomadores de decisão, caso assim o escolham, através de canais previstos e formalizados. De outra parte, o impreciso e incerto “confie em mim, farei o melhor principalmente porque sou uma pessoa de confiança” e não porque apresenta bons métodos e soluções, construídos solidamente em processos conjuntos de avaliação e revaliação, funciona através da via de mão única. Há apenas ou majoritariamente o comunicar do que deve ser feito ou pensado, sem detalhar como se chegou aquelas conclusões. A descrição do caminho teórico dificilmente é explanada pelos líderes e ainda que expliquem, será através do máximo controle sobre o formato da conversa e de seus resultados e imbricado em convencimentos emocionais ou distorcidos, o que garante a aprovação coletiva.

Os próprios integrantes do grupo difundem a ideia da confiança “eu confio em você”, “eu confio nela/nele”, “não me preocupo porque ele/ela irá realizar um bom trabalho” etc. E passam a ser multiplicadores da lógica da fé em detrimentos da lógica da investigação coletiva, da dúvida e da transparência. Ainda que haja diálogo, este será conduzido pela imprecisão na explanação por parte dos líderes e pela aceitação de ideias previamente construídas dentro da cúpula que também praticam a elaboração prévia de estratégia de comunicação ao coletivo com o intuito de passar a todo custo esta ou aquela proposta, prevendo de antemão possíveis discordâncias ou desagrados. Essa é, aliás, uma estratégia muito comum dentro de organizações partidárias e no próprio funcionamento da tomada de decisões em espaços político-representativos. Esse negativo traço de funcionamento em espaços formais da democracia há de ser aprimorado para que exista diálogo de fato nas casas parlamentares e estruturas partidárias, possibilitando embates construtivos de visões divergentes.

O líder que estrutura sua prática através do fortalecimento da crença coletiva em sua figura age através do acomodamento em seu posto. A partir do momento em que se estabelece como líder, o estímulo na crença em sua pessoa enquanto o mais apto a lá permanecer é peça fundamental na sustentação da estrutura que opera a partir da lógica da seita. Uma vez ocupado o posto de liderança, os próximos passos servirão para fortalecer esse local de dominação do território coletivo sem que haja a necessidade de construção coletiva dos rumos do grupo. Todas as ideias e propostas do líder passam a ser aceitas sem contestação. O grupo passa a segui-lo, pois acredita que aquela pessoa, por ser quem é – o que inclui ter feito o que fez, ainda que de forma centralizadora, manipuladora etc.– realizará sempre boas práticas pelo grupo. Um

Importante notar que a figura de líder pode ser exercida também a partir de um grupo. Ou seja, as mesmas características encontradas em líderes de grupos que funcionam como uma seita, podem ser encontradas em grupos de pessoas que, reunidas a partir de afinidades, sustentação de benefícios e relações de poder, passam a exercer algum tipo de controle sobre o restante do grupo.

A difusão da fé, da aceitação acrítica ou com obstáculos à crítica – em líderes, em símbolos estabelecidos, em ideias consolidadas, em práticas antigas – são pilares fundamentais para a manutenção dos grupos que funcionam a partir da lógica da seita. A ideia da crença (“confio nesta pessoa pois tenho certeza que ela fará o melhor”), neste contexto é a máscara visível que se sobrepõe à visibilidade das práticas autoritárias, camuflando-as principalmente no discurso. Distorção, chantagem emocional, retirada de benefícios, ameaças, geração de medo e insegurança (“serei excluída do grupo caso me manifeste de forma contrária” etc.) e outras práticas sustentam a rede de elementos relacionais que possibilitam a manutenção de líderes ou grupos que se apropriam de estruturas de tomada de decisão, impedindo ou dificultando a autonomia coletiva sobre o coletivo.

“Confie em mim”, o que gera “Eu confio nela/nele” e então, “Você deveria confiar nela/nele, pois estão fazendo o melhor por nós”. Frequentemente, o “Você deveria confiar nela/nele” passa a existir sozinho, sem a necessidade anterior do “Confie em mim” do líder, a partir de uma autoreprodução do sistema. A lógica da seita se estabelece em um conjunto de pessoas que passam a apoiar práticas autoritárias. O conjunto do grupo é base fundamental para que o líder, a líder ou o grupo autoritário prospere. Sem a base, não há culto ou seita possível que sustente as ações de controle, violência e dominação exercidos pelos líderes em uma dinâmica complexa onde algumas vítimas podem ser também ser entendidas como apoiadoras dos perpetradores da violência e injustiças.

Trecho de ensaio da seção Ensaios de autoria de Daniela Alvares Beskow, escritora e cientista política

30 de dezembro de 2023

Palavra e Meia Semanal

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