Genocídio palestino em curso
A existência de uma guerra sinaliza a ausência de procedimentos prévios que deveriam ter sido realizados e não foram. A comunicação entre duas ou mais partes, realizada de forma mediada com o objetivo de levantar soluções para contextos de conflito ou violência, é etapa essencial na prática da política e da justiça. A guerra é a expressão do fracasso não apenas da ética e da possibilidade de respeito à vida, mas também da derrota da mediação realizada por atores externos, estes, em muitos momentos influenciados por interesses ideológicos e econômicos em detrimento do reconhecimento à soberania dos povos e da valorização à vida. Frente a situações semelhantes que ocorrem em territórios distintos, um mesmo país se posicionar de forma oposta expressa que os elementos que balizam seus posicionamentos são frequentemente resultados de dinâmicas de favorecimento individual e não da avaliação de contextos a partir de valores de humanidade. Há uma opção pela não exigência da responsabilização por atos de violência, crimes de guerra e pela própria guerra – que, por si só, não deveria existir – de países considerados parceiros e possíveis apoiadores incondicionais em futuras situações. Troca-se apoio, influência, poder, recursos, dinheiro, garantias. As vítimas da violência, nesse caso, são elemento não levado em consideração, especialmente quando integram grupos socialmente vulnerabilizados, a quem a história estruturou sentidos, conduzindo a interpretações que os desumanizam ou desvalorizam enquanto merecedores plenos de direitos, favorecendo a falta de apoio coletivo. Foram muitos os povos na história referidos por povos violadores como “animais”.
Quando situações similares são avaliadas a partir de critérios diferentes, o conjunto de princípios válido para um grupo passa a não ser válido para o outro. O contexto em que apenas uma das partes tem o direito à autodefesa tem um nome: violação de direitos. O tema se complexifica quando o que está em jogo ultrapassa apenas dois elementos. O contexto da guerra, na maioria dos casos, envolve ao menos dois fatores em cada parte: líderes e população, o que, no caso de dois países em guerra, seria ao menos 4 fatores em jogo. São em geral os líderes que decidem pela guerra e obrigam parte da população a pegar em armas. Aí entra um terceiro fator em cada território: o braço armado do Estado. Civis são deixados no meio do fogo cruzado entre soldados ordenados por chefes e líderes – na grande maioria das vezes, homens – para fugir, se proteger ou morrer. Há casos mais complexos, como os povos que pegam em armas por decisão própria e, frequentemente, por desespero, resultado de não ter a quem recorrer, expressando o fracasso da mediação, como apontado acima. As milícias por vezes existem, expressão da inabilidade do Estado em administrar as divergências em seu próprio território. Cidadãos, a maioria da sociedade, que muitas vezes dispõem de uma diversidade de argumentos contrários ao embate e também soluções para o coletivo, perdem a vida em função de decisões tomadas por pessoas e grupos que detêm o poder de iniciar e manter a violência institucionalizada. A sociedade fica à mercê de homens que defendem a morte.
Um ponto a ser analisado é o contexto onde há assimetria entre as duas partes envolvidas no embate armado. Se não há igualdade de condições, não há as mesmas possibilidades de ambas as partes atacarem e se defenderem, vencerem a disputa. Esse é um pensamento útil para a competição esportiva, mas a mera escrita sobre o tema quando se trata de ataques que envolvem vida e morte parece absurda. A guerra não deveria existir. Esta é a premissa. Atacar um povo que não provém dos meios para se defender, vulnerabilizado pela escassez de alimentos, água e medicamentos é ainda mais covarde.
No caso de ataque, o direito à autodefesa deve existir, porém, a autodefesa ocorre no momento do ataque e não depois. A ação de destruição que ocorre após o ataque tem outros nomes, um deles é vingança ou a “justiça com as próprias mãos”, onde o mais fraco fica à mercê da lei do mais forte. Nesse caso, a falha está na ausência da mediação que deve vir de fora para avaliar, investigar, punir, impor sanções, exigir. Etapas que devem ser realizadas e pensadas de forma contextualizada, pois há eventos que não ocorrem de forma isolada, sendo, portanto, necessária a análise dos fatos frente ao processo histórico. Nesse caso, é possível pensar o ataque tardio como uma reação à violência que se iniciou no passado e prolonga-se até o presente, sendo esse o caso mais difícil de julgar. Pois há reações ou ataques tardios que podem ser desproporcionais à violência iniciada no passado e prolongada no tempo. Por outro lado, a extensão de violências é transformada em situações que confundem a interpretação, a violência se dilui no cotidiano e apoia-se em fatores da vida cidadã e de um conjunto de direitos – ainda que precários – implementados aos violados. A violência prolongada e não questionada de forma incisiva pelos mediadores externos leva à naturalização da violência que passa a ser vista como aceitável. E é também essa interpretação deturpada que irá balizar a avaliação sobre reações tardias à violência. A autorização social para a violência permanente falta com o dever coletivo de vigilância pela vida do outro, que, quando sob ataque, deve ser protegido. Há um dever ético coletivo em preservar a vida para todos. Violências prolongadas não deixam de ser violências devido à diminuição do nível de intensidade da retirada de direitos ou à distância temporal em relação ao seu início.
Quando sob qualquer tipo de ataque, a autodefesa que produz mais vítimas não é autodefesa, é uma explícita deturpação do conceito. Os líderes de Israel que matam vulneráveis enjaulados sob o argumento de que estão se defendendo é vergonhoso. O conceito “terrorismo de Estado” melhor se aplicaria à situação. A violência que ocorre em Gaza atualmente é peculiar, pois o mesmo Estado que ataca uma população inocente é o mesmo que tem o poder de fechar fronteiras do país vitimado e de cortar suprimentos e recursos essenciais. A ação constitui em bombardear infraestrutura essenciais e residências de civis, impedir a entrada de alimentos e água e impedir a fuga da população. Não há outro nome para o que está ocorrendo senão genocídio e limpeza étnica. Matar com bombas ou matar de fome e sede.
Tem sido difundido um argumento perigoso por Israel e defensores da violência contra civis de que a responsabilidade pela morte da população palestina ocasionada pelas bombas de Israel não seria de Israel, mas do Hamas, que teria se escondido entre os cidadãos. Argumento irresponsável que visa infligir a culpa por assassinatos em terceiros. A população está morrendo devido às bombas, as bombas estão sendo lançadas por Israel, logo, os responsáveis por estas mortes é Israel, não há outro argumento possível, a não ser resultado de um malabarismo discursivo covarde que valoriza a vida apenas de um lado do embate. Todas as vidas são importantes e toda a violência é condenável. Não há lados para se escolher quando se trata de civis em uma guerra.
Todos os responsáveis pelo assassinato e qualquer tipo de violência a civis devem ser responsabilizados, seja de qual território pertençam, seja qual foi a violência. Sequestros, cárcere, assassinatos e também fechamento de fronteiras, privação de direitos, bloqueio de recursos essenciais, impedimento do direito de ir e vir, ocupação ilegal de territórios. Há uma longa história anterior a outubro de 2023, qualquer análise isolada será rasa.
É preciso também observar que a violência da guerra é praticada majoritariamente por homens. Homens matando homens e homens matando mulheres. A guerra também está também apoiada no sistema geral onde homens detêm o poder de decisão e este elemento deve ser levado em conta nas análises sobre embates armados. Homens irresponsáveis que colocam em risco a vida de milhares, milhões, incluindo mulheres e crianças.
Atacar uma população que não tem como se autodefender, fugir, sobreviver ou obter apoio externo é massacre, extermínio, covardia. Enquanto civis de Gaza morrem em massa, isolados do mundo e vitimados pelas bombas de Israel, a população de Israel tem comida na mesa e seus líderes dispõe de todas as ferramentas disponíveis para obter apoio e fazer alianças. Essa parte do jogo político está sendo negado à Palestina, que, segundo as próprias palavras do primeiro-ministro, é uma “cidade perversa” e que irá transformá-la em uma “ilha de ruínas”. Em declaração no início dos ataques chegou a pedir que os civis saíssem de casa, pois bombardeios ocorreriam na região. E então, bloqueou as fronteiras e suspendeu a entrada de recursos. A população está impedida de sair pelo próprio líder que a bombardeia. Centenas de pessoas estão sem moradia, “deslocadas” nas ruas ou procurando abrigos, todos à mercê das bombas. No sexto dia de ataque à Gaza, novo aviso foi dado à população: os mais de um milhão de moradores do norte de Gaza deveriam deixar suas casas e de dirigir ao sul. Porém, não há abrigo no sul e tampouco transporte para o deslocamento deste contingente populacional que também está impedido, pois as fronteiras foram bloqueadas. O cinismo beira ao absurdo, realizar ordem de tamanho desrespeito, obrigando tal quantidade de pessoas a vagar pelas ruas da cidade em meio à destroços, morte e insegurança. No dia de hoje – 13 de outubro de 2023 – foi relatado que ao menos 70 pessoas que se dispuseram ao deslocamento pelas ruas, foram assassinadas pelo exército de Israel. Em outro local do território palestino, jornalistas visivelmente identificados foram mortos. Durante a semana, além de milhares de civis palestinos, também foram assassinados pelas bombas israelenses, médicos e funcionários da Nações Unidas. Um genocídio está em curso, apoiado por grandes potências mundiais.
Pessoas e grupos ao redor que não auxiliam vítimas são também responsáveis pela violência cometida contra elas. O perigo de violências que se prolongam por extensos períodos é o esquecimento ou distorção sobre as origens do evento, passando a haver a interpretação da realidade majoritariamente a partir da experiência imediata, além de interpretações manipuladas sobre o passado e que favorecem narrativas tendenciosas. Observando os agentes dominantes de determinado evento, surge a reflexão sobre que tipo de experiência imediata tem tido jovens palestinos que viveram todas as suas – até então – curtas vidas. Uma vida inteira vivendo dentro de uma prisão ao céu aberto. É certo que estes jovens não se percebem como merecedores de tal situação ou que estão pagando por algum tipo de crime cometido. Jovens que até o momento não tiveram um parâmetro de dignidade e respeito por parte dos que o cercam em fronteiras territoriais nos últimos anos e décadas. O que dizer das crianças que tiveram suas vidas ceifadas em ataques aéreos do povo vizinho, seres que não tiveram a oportunidade de crescer, viajar, atravessar fronteiras e conhecer o mundo. Neste momento é difícil ter esperança.
Coluna da seção Breves de autoria de Daniela Alvares Beskow, escritora e cientista política
13 de outubro de 2023
Palavra e Meia Semanal
Acompanhe: @_palavraemeia
Em breve, campanha de assinaturas!