A loǵica da seita, parte 2

Líderes

Uma das características da seita é a existência de líderes ou pessoas-chave que frequentemente ou ininterruptamente tomam as decisões a respeito do funcionamento do grupo ou influenciam quem toma as decisões e o grupo como um todo a partir da lógica da homogeneidade. Esta é caracterizada por pouco ou falta de revezamento na tomada de decisões ou na difusão de ideias que influenciam a materialidade do grupo; decisões que frequentemente são constituídas de lógicas de perpetuação do sistema – ainda que demonstrem diversidade de conteúdo ao longo do tempo – o que inclui como pressuposto a permanência das mesmas pessoas nos locais de decisão e geração de ideias influentes para possibilitar a manutenção do sistema já posto a nível do grupo – e não do desenvolvimento de conhecimento coletivo, ou seja, resultam em homogeneidade das formas; decisões ou visões pouco ou nunca são questionadas, a partir de uma homogeneidade de reação – ou reação acrítica – a tais líderes e pessoas-chave.

Líderes e pessoas influentes que colaboram para a perpetuação do sistema tendem a concentrar poder de tomada de decisão e de elaboração de ideias sobre o próprio grupo e a realidade, ou seja, a decisão ocorre também na formulação de ideias, direcionando quais as ideias são corretas/aceitáveis e quais são incorretas/inaceitáveis. Os líderes ou as líderes comumente são associadas a figuras míticas: deuses, musas, rainhas, ou seja, imagens simbólicas, amplificadas em sua existência humana/terrena para o status de seres especiais e muitas vezes divinos e, logo, inalcançáveis, inquestionáveis. Líderes e pessoas influentes podem ser um grupo ou apenas uma pessoa dentro do grupo.

Importante atentar para o fator decisão sobre as ideias aceitáveis ou inaceitáveis. Uma seita não decide ou restringe apenas o comportamento dos integrantes, formas de se relacionar, datas/eventos a serem cumpridos pelo grupo e outros elementos físicos e espaciais. A lógica da seita influi diretamente na formulação e circulação de ideias e assenta-se na tentativa constante da perpetuação do pensamento único, ou seja, aquele que não admite a contestação, dúvida, debate e construção coletiva de ideias. O levantamento de qualquer uma dessas qualidades do pensamento e relação social gera grande descontentamento por parte dos que controlam a narrativa, podendo ocorrer através de manifestação da ira como ferramenta para a disseminação do medo e, logo, extirpação de futuros questionamentos vindos de outros integrantes do grupo, que, mesmo discordando, se sentem intimidados a não se manifestarem tendo em vista o exemplo de punição à discordância ocorrido anteriormente. Importante notar a diferença entre a raiva enquanto justa manifestação frente a injustiças e importante motivador de lutas e questionamentos e a ira enquanto ferramenta do poder, com o objetivo de controle e abafamento da contrariedade. Pessoas autoritárias frequentemente se utilizam deste estado de comportamento vinculado ao primeiro argumento, distorcendo, inclusive, a interpretação sobre a ação abusiva. Líderes e influenciadores de ideias que operam a partir da lógica da seita são pessoas abusivas e a distorção, manipulação da informação e mentira são pilares das ações de pessoas abusivas, que muitas vezes se apoiam em apropriação de conceitos para acobertar seus abusos.

As decisões tomadas por líderes e influenciadores que operam na lógica da seita apresentam inúmeras características, tanto nos conteúdos quanto nas formas. Enquanto conteúdo, cristalizam narrativas sem que tenha havido possibilidade para o discordante, a comparação e a investigação ampla e contínua; aproximam argumentos da emoção enquanto o distanciam da razão, não enquanto um enriquecimento do conhecimento que pode ser entendido também enquanto produto do sentimento e dos significados históricos que constituem a materialidade dos povos, mas como um apartamento do desenvolvimento de ferramentas capazes de investigar e criticar desvinculadas do controle emotivo e subjetivo da informação, ou seja, utiliza a emoção enquanto chantagem interpretativa; forçam ao coletivo argumentos sem comprovação ou com distorção de dados ou fatos históricos, produzindo falsas conclusões; entre outras.

Em relação às formas, centralizam contatos com o externo, privando o grupo do pensamento crítico com e sobre a realidade externa/divergente e, dessa forma, minam a possibilidade de articulações dos integrantes do grupo com pessoas de fora, de forma a impossibilitar o florescimento de novas ideias, estruturas, ações, ou seja, mantêm a tentativa constante em preservar uma espécie de bolha com pouca penetração de dentro para fora ou de fora para dentro; se empenham em manter formas de organização com nenhuma ou pouca participação coletiva na tomada de decisões; estimulam agressões e punições produzidas fora do núcleo controlador, ou seja, colocam as pessoas umas contra as outras, gerando na superfície a interpretação de que o núcleo é a referência de estabilidade para o grupo, quando na estrutura de funcionamento opera de forma a gerar um grupo desestabilizador de forma a gerar, por contraste, a interpretação sobre a suposta estabilidade do núcleo de líderes e pessoas influenciadoras. Dessa forma, desvaloriza o conhecimento coletivo, ou seja, o grupo deve ser entendido como inferior na sua habilidade de gerar ideias e decisões e ao mesmo tempo como potencial disruptivo da ordem, em outras palavras, o coletivo é bom (útil) para seguir líderes e ruim (inútil) para desenvolver autonomia; entre outras características que caminham na direção da instrumentalização do grupo para o núcleo de líderes, que passa a ser utilizado enquanto ferramenta para a manutenção do poder destas pessoas, além de impulsioná-las enquanto figuras públicas e reconhecidas enquanto dotadas de sabedoria ou conhecimentos destacados. Este processo, como já dito, passa pelo sufocamento das várias outras sabedorias, para que apenas algumas poucas se sobressaiam.

Uma das principais características de líderes e influenciadores que operam a partir da lógica da seita é se fortalecerem em uma comunidade acrítica às ideias internas dominantes, seja elas quais forem. Na seita, o grupo deve aceitar incondicionalmente ou a partir de críticas não ameaçadoras as ideias e decisões dessas pessoas sob o risco de humilhação pública ou individual, expulsão do grupo e outros castigos. Como todo sistema de cooptação, existirão com frequência simulacros de espaços participativos e de reconhecimento do grupo. Esses são, aliás, importantes ferramentas para convencer os integrantes de que o grupo não está baseado em uma experiência autoritária, mas, sim, de respeito às individualidades e trabalho coletivo. Tais espaços dificilmente alterarão as estruturas já postas, mas cumprem o papel de gerar satisfação individual nos integrantes no quesito reconhecimento de suas ideias, em outras palavras, produz a satisfação a partir de migalhas.

Estes são alguns elementos úteis para pensarmos os líderes e influenciadores de ideias em grupos que funcionam a partir da lógica da seita.

Trecho de ensaio da seção Ensaios de autoria de Daniela Alvares Beskow, escritora e cientista política

07 de dezembro de 2023

Palavra e Meia Semanal

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