Estupro pago à justiça?

Essa semana tivemos a estarrecedora notícia de que um agressor sexual condenado a quatro anos de prisão na Espanha foi libertado após pagar um milhão de euros à justiça. Esse caso leva à uma perturbadora reflexão. Houve um pagamento envolvido e logo entende-se que a violência sexual ocorrida se encontra no mesmo grupo das demais violências sexuais envolvidas com algum tipo de transação financeira. O fato de o próprio sistema de justiça estar envolvido nesse tipo de relação monetária assusta, pois o sistema jurídico deveria proteger vítimas, principalmente de violências tão graves. O pagamento realizado pode ser entendido pelos homens da sociedade como uma autorização para estuprar. Um pagamento substancioso, possibilitado aos homens da elite econômica. Pagar para ter assegurado a liberdade de estuprar. Nesse caso, o pagamento é realizado após a violência. A justiça estaria formalizando o estupro pago? Fica a questão. Quem é rico tem a permissão para estuprar?

O estupro pode ser entendido como um dos crimes mais graves contra a pessoa humana, ferindo a dignidade, existência e soberania de mulheres ao redor do mundo. É uma das violações que acompanha a vítima por toda a vida, violência que ultrapassa a barreira da proteção corporal e do direito à intimidade, deixando rastros e traumas emocionais profundos.

O agressor sexual pensa-se no direito de se apossar de corpos alheios em uma relação de abuso que favorece o seu próprio prazer individual. Entende que a soberania de sua própria corporalidade o permite invadir outras pessoas, corpos que são também territórios de vida e proteção, mas entendidos pelo agressor como desprovidos de tais qualidades. Esse agressor utiliza outras pessoas como meios utilitários para seu deleite, não as entendendo como pessoas dotadas de direitos, mas como objetos a seu serviço.

Essa é a mesma postura dos homens que esfregam sua genitália em mulheres em transportes públicos, que tocam em partes íntimas de mulheres sem sua permissão; que olham ostensivamente para partes íntimas de mulheres nos espaços coletivos; que coagem e insistem, forçando momentos íntimos com mulheres em bares e festas. Médicos ou técnicos que estupram mulheres sedadas durante cirurgias ou no pós-operatório, homens que instalam câmeras espiãs em quartos de hotéis, que filmam partes íntimas de mulheres em metrôs e ônibus, homens que sequestram mulheres para serem esposas serviçais ou escravas sexuais em outros países. Agressores sexuais de vários tipos que têm algo em comum: não consideram as mulheres como sujeitos, participantes da sociedade, sujeitas soberanas. Mulheres públicas para eles não são mulheres políticas, líderes ou oradoras, mas mulheres cujo território corporal é interpretado como de domínio público, de livre acesso para homens.

Os níveis de gravidade desses abusos são diferentes, mas são todas agressões e violências de tipo sexual. Muitas delas envolvem dinheiro. Homens que pagam para comprar imagens íntimas filmadas sem autorização, homens que pagam para estuprar ou comprar mulheres traficadas e outros exemplos.

É inaceitável que a o sistema de justiça, cuja função é proteger pessoas, aceite recursos financeiros de homens como forma de autorização para estuprar. O aceite desse tipo de compra não apenas distorce as premissas judiciárias e constitucionais de garantia da segurança e dignidade de mulheres, mas, também determina uma divisão econômica entre quem pode e quem não pode se utilizar desse pagamento ao estupro, como se o direito ao estupro pudesse ser entendido dentro do livre mercado de venda e compra capitalista. Há uma sugestão, ainda que percebida de forma indireta, de que há um pagamento pelo estupro e este é algo a ser alcançado à medida que se acumula economicamente e avança na classe econômica. O estupro seria comparável à um carro de luxo, uma casa em um bairro rico, uma lancha, um jatinho. O estupro entendido como uma prática possibilitada pela alta renda, reservada às classes abastadas. Uma roupa de grife, uma viagem de avião na primeira classe com estadia hotel cinco estrelas, um passeio em cruzeiro, um estupro. Todos acessíveis aos integrantes das elites.

Texto curto da seção Breves escrito por Daniela Alvares Beskow

29 de março de 2024

Acompanhe Palavra e Meia Semanal no Instagram: @palavraemeiasemanal

Em breve, campanha de assinaturas!