Feminilização e assertividade
Feminilização e assertividade[1]
Olá, pessoal, tudo bom? Eu sou a Daniela Alvares Beskow, eu sou escritora, artista e cientista política. Hoje eu quero pensar com vocês sobre três temas, a feminilização das mulheres, a assertividade em mulheres as relações sociais entre homens e mulheres e entre mulheres e mulheres.
Feminilização
Vamos começar com essa ideia da feminilização. Em 2015, 2016, eu comecei a utilizar esse conceito e na época não havia ouvido essa palavra em nenhum outro lugar, não sei então se havia já outras mulheres tanto no Brasil ou no mundo que utilizavam essa ideia e nesse caso eu gostaria de conhecer vocês ou conhecer essas autoras, pois eu tenho interesse em pensar a genealogia dos conceitos, principalmente das mulheres brasileiras, de nós, pensadoras todas, então me avisem. Enfim, naquele momento eu joguei essa ideia para os grupos de mulheres que eu participava e
hoje eu vejo uma difusão maior dessa ideia da feminilização, mulheres “feminilizadas” ou “não feminilizadas”, vamos até pensar sobre isso mais para frente.
Eu acho importante que haja a difusão desse pensamento, pois ressalta-se que feminilizar as mulheres não é um processo natural, é um processo social.
Vamos lá ao significado do conceito, da forma que eu comecei a utilizar faz alguns anos. Inclusive foi em 2016, no movimento lésbico, que eu também, na cidade de São Paulo, ajudei a organizar coletivamente a oficina “Mulheres feminilizadas e mulheres não feminilizadas”, onde houve rodas de debate sobre isso. Tenho registros desse momento, foi interessante.
Pensando então o conceito, quando pensamos que existe um processo de feminilização das mulheres, o que isso quer dizer? Durante a vida coletiva das mulheres, há vários acontecimentos, há um contexto que tenta impor às mulheres que elas sejam feminilizadas. “Feminilizadas” seria um contexto, um contexto de ação, de vida, de existência que se impõe sobre as mulheres, sobre as pessoas que nasceram como pessoas do sexo feminino. Então uma mulher “ser feminina” não é uma coisa natural. Na sociedade há um senso comum – é importante às vezes partir do senso comum para entender mais a fundo – de que existem mulheres femininas e mulheres não femininas ou que “ser feminina” faria parte da natureza das mulheres e que mulheres não femininas estariam fugindo da sua natureza. Coloca-se que o “ser feminina” seria uma qualidade encontrada em uma mulher com atributos da delicadeza, da suavidade, da docilidade e, logo, associa-se mulheres que fogem dessas características a mulheres que estariam fugindo da sua natureza,
Partindo desse senso comum, eu comecei a pensar no ano de 2015, aproximadamente, que, primeiro, não seria tão adequado falarmos em mulheres “femininas”, seria mais interessante falar em mulheres “feminilizadas”, pois o processo de tornar mulheres femininas é um processo, um processo de feminilização. Vamos então pensar o que é isso primeiro. É importante atentarmos para a questão de que a feminilidade, assim como a masculinidade são relações sociais, e elas são construídas a partir da relação desses dois polos opostos, que situam mulheres em um polo e homens em outro polo, e essa relação é uma relação de poder, onde os homens violentam e dominam as mulheres. Logo, a feminilidade existe dentro do contexto patriarcal onde sofre a violência dos homens, que seria a masculinidade. A feminilidade apenas existe nessa relação dual, essa relação de opostos e que se baseia na violência. Essa é a primeira ideia da feminilidade.
Então, qual é essa violência? É a violência patriarcal que sufoca as mulheres, que sufoca sua potência política, que tenta impedir cotidiana e contextualmente o desenvolvimento das características políticas das mulheres. O patriarcado tem nos seus locais de tomada de decisão, majoritariamente homens, ou muitas vezes em muitas sociedades, em todos os espaços onde se tomam decisões coletivas apenas existem homens. Essa é a característica principal do patriarcado, Coloca-se a mulher e, logo, o feminino, logo, a feminilidade, primeiramente nesse local de subordinação política, de não decisão, de não manifestação da sua opinião e do seu argumento e de aceitar incondicionalmente as regras criadas pelos homens.
A feminilidade é, então, primeiro a tentativa dos homens de bloquear o desenvolvimento político das mulheres, esse é o primeiro ponto, e a partir desse primeiro ponto de impedir que as mulheres estejam nos espaços políticos há um desenvolvimento complexo de várias características e imposições nas relações sociais sobre como as mulheres devem ser e como os homens devem ser, pois, a partir do momento que vai sendo gerado um polo, vai sendo gerado outro polo, e eles vão se alimentando a partir da relação de oposição. As mulheres, estando fora dos espaços políticos, reforça a ideia de que as mulheres não devem ser assertivas, pois a assertividade é uma característica importante no espaço político, onde se toma decisões, onde se realizam debates. Iremos falar um pouquinho melhor sobre assertividade daqui a pouco. A assertividade é essa característica, esse contexto em que a pessoa se coloca, coloca suas opiniões, ela desenvolve essa habilidade de se colocar, de falar não, de falar sim, de argumentar e de debater. E de realizar ações em coletivo e de forma individual também. Então, a partir do momento que os homens tentam impedir que as mulheres estejam nos espaços coletivos, eles também tentam impedir que elas desenvolvam essa característica da assertividade, e aí observa-se uma complexidade de fatores. Quando afirma-se que a mulher não deve ser um ser político, o que o patriarcado tem feito também nos últimos milênios, em várias sociedades, é associar as mulheres ao campo da sexualidade. Do meu ponto de vista, sexualidade e política estão em polos opostos, enquanto a política é um espaço coletivo do debate, do argumento, da dúvida, da estratégia, da proposição, enfim, da racionalidade etc. – havendo também espaço para a emoção na política – o campo da sexualidade é um campo mais da intimidade, da percepção corporal, do erotismo etc. Seria um campo bem diferente do campo da política. No patriarcado os homens tentam a todo momento reforçar essa característica da sexualidade, do erotismo às mulheres. Ao longo dos últimos milênios foi associando-se cada vez mais as mulheres com a sexualidade e menos com a política, gerando esse outro desdobramento da questão da feminilização dos corpos das mulheres.
Há, então, desdobramentos gravíssimos, como o estupro, que é o contexto onde os homens se sentem no direito de impor a atividade sexual para as mulheres, a violência sexual. Há nas sociedades o espaço público que se torna dificílimo para as mulheres transitarem, pois elas estão sempre submetidas a olhares sexualizantes, pode-se classificar isso como violência visual, inclusive como violência sexual, o olhar ostensivo para as partes íntimas. Existe uma dificuldade dos homens até mesmo de conversarem com as mulheres nos espaços coletivos, pois eles estão sempre olhando para as partes íntimas das mulheres de forma ostensiva em vez de dialogar com elas normalmente. A gente tem na mídia, nas revistas, nas bancas de jornal, na internet etc. um excesso de imagens que erotizam mulheres, vemos nos livros, nas histórias, no discurso científico, no discurso jurídico, em todos os campos isso foi se reforçando, um campo foi reforçando o outro ao longo da história, de modo a associar a mulher ao erotismo. Inclusive, existe atualmente um contexto bastante grave em relação a isso na internet, que é uma rede gigantesca – eu nem saberia dizer em números, pois eu não pesquiso isso a fundo – uma rede gigantesca de pornografia que é bilionária, eu nem sei dizer quantos homens, bilhões de homens acessam, é uma rede muito ativa de compra de pornografia. Uma das coisas mais graves em relação a isso é que, muitas vezes, nessas redes de pornografia circulam imagens de crianças sendo violentadas sexualmente ou de mulheres em situações de violência sexual. Os homens filmam essas imagens e circulam essas imagens na internet e outros homens compram essas imagens, enfim, uma coisa horrorosa, uma coisa gravíssima e é difícil entender como o mundo está há tantos anos tolerando essa situação, que, pelo que eu tenho acompanhado, só aumenta a cada dia. Esses são alguns dos desdobramentos da feminilização dos corpos.
Temos então, primeiro, o impedimento, a tentativa de impedimento da capacidade e habilidade política das mulheres, a seguir, o impedimento da assertividade em mulheres e, então, o ostensivo reforço da imagem da mulher a eroticidade e sexualidade. Nesses três elementos principais há vários elementos cotidianos.
O processo de feminilização de uma pessoa do sexo feminino, desde sempre, desde bebê, desde criança é impedir que ela se manifeste livremente, impedir que ela manifeste as suas habilidades corporais quando essas habilidades estão relacionadas, por exemplo, à força física e habilidades coletivas. Muitas vezes em esportes que exigem força física e rapidez, como no futebol, basquete ou atletismo – a maioria dos esportes exige, na verdade, uma grande força física, mas, há alguns esportes que nas escolas são associados às mulheres e vários outros esportes onde não é estimulado que elas desenvolvam a capacidade muscular. Então vamos observando nesse processo de feminilização que vão sendo impedidas várias características das mulheres, como a tentativa de impedimento do desenvolvimento físico das mulheres, a força, as suas habilidades etc. A sociedade vai promovendo também uma questão com as roupas. As roupas vendidas em massa nas lojas e nas fábricas que fabricam grandes quantidades de roupas, os modelos da costura que as fábricas vão reproduzindo são desconfortáveis. Observa-se também como essa prática se altera ao longo dos anos. Essa prática das roupas desconfortáveis para mulheres existe há algumas décadas no Brasil. Talvez antes, nas décadas de 80, 70 e 60, as calças fossem diferentes. Hoje é muito difícil encontrar uma calça confortável, hoje as pessoas nomeiam de “cintura alta”, mas seria, do meu ponto de vista, a cintura comum, enfim, a calça que está na altura da cintura. A calças jeans ou calças sociais estão com uma cintura muito baixa de forma que deixa exposta, e às vezes até exposta ao frio, o centro do corpo da mulher, seja as costas, seja a barriga e também pressiona a região da respiração. A própria largura da perna nas calças, em geral é muito justa, logo, é uma calça desconfortável, que aperta, a mulher não consegue se movimentar.
Há um modelo de camisetas para mulheres no Brasil conhecido como “baby look”, cuja tradução seria “estética de bebê”. É muito esquisito uma pessoa adulta vestir uma estética de bebê, seria uma camiseta bem pequenininha, que fica bem justa. Em alguns encontros coletivos, um evento qualquer onde são produzidas camisetas para vender para os integrantes desse grupo, são fabricados os modelos femininos e os masculinos, sendo os femininos para as adultas, extremamente pequenos, que também dificultam a movimentação dos ombros, pois é difícil levantar o braço, pois o tecido embaixo é repuxado, além de ressaltar as formas do corpo, tanto a calça justa quanto a camiseta.
Há também os calçados, uma situação alarmante, eu diria, no Brasil. É difícil encontrar sapato social baixo e fechado para as mulheres. Eu não sei quem inventou essa questão do salto alto e da sandália de salto alto, é algo que impõe dificuldade para o deslocamento. Qual é a função de um sapato que impede o deslocamento? Função nenhuma. As mulheres acabam utilizando e muitas vezes desenvolvem problemas nas articulações.
Há também as roupas íntimas – calcinha e sutiã –, cujos tamanhos diminuem a cada ano que passa. Antes o número 38, 40 era um tamanho, hoje esse tamanho é minúsculo. As roupas íntimas são muito desconfortáveis no caso do sutiã, muitas vezes dificultam a respiração. É muito esquisito que a indústria esteja há tanto tempo estimulando esse tipo de roupa em mulheres.
O processo de feminilização dos corpos é diferente em cada sociedade. Há alguns anos, eu finalizei o mestrado – em 2017 -, no meu texto eu falo um pouco sobre isso, há um capítulo sobre o tema e, na época, eu decidi por falar da feminilidade e as mulheres brancas, naquele momento foi uma opção teórica em abordar essa questão cultural dos povos, a questão da dominação. No Brasil, há várias culturas, várias etnias, mas há uma cultura dominante, que é a cultura que veio da Europa e, através da violência, se impôs sobre o Brasil. Eu optei naquele momento por falar da feminilidade a partir dessa questão dominante, mas é importante entendermos que a feminilidade – ou melhor, a divisão sexual, os papéis sexuais que essa divisão entre homens e mulheres e as funções que as pessoas adquirem nas sociedades em função do seu sexo – existe em todas as sociedades. É difícil encontrarmos uma sociedade onde seja mais amena as diferenças sociais em função do sexo. Na maioria das sociedades essas diferenças também levam a um contexto patriarcal onde essas diferenças geram a desigualdades, onde os homens se impõem de alguma forma. Há vários pensamentos e reflexões sobre isso, um deles é, inclusive, pensar esses agrupamentos de mulheres
também como espaços de fortalecimento, mas é importante entender que muitas vezes esse agrupamento de mulheres é um espaço de segregação, pois elas estão segregadas e impedidas de estarem nos espaços coletivos públicos. Há então essa dupla interpretação, mas, de qualquer maneira, é importante entender que esses processos de segregação e de papéis sexuais existem em todas as sociedades. Eu não tenho estudado em profundidade o conceito do feminino e da feminilização em todas as sociedades, por isso quando eu finalizei o texto do mestrado, especificamente, eu optei por falar sobre a questão dominante da cultura branca, da branquitude. Mas penso que é importante pensarmos como esses processos ocorrem em todas as sociedades, pois o patriarcado existe em todas as sociedades.
Pensando no Brasil hoje, inclusive como resultado da imposição da branquitude, pensando o contexto atual, estamos pensando um contexto que é resultado da colonização, da invasão europeia, da imposição desses valores, mas é importante pensarmos como essas várias culturas tratam as mulheres. Fiz um parênteses.
Pensando então de forma aprofundada a feminilização, estávamos falando das roupas. A roupas desconfortáveis impedem e reforçam a dificuldade das mulheres em transitarem pelos espaços públicos, os espaços coletivos, pois como uma mulher de salto alto vai sair correndo no meio da rua caso ela precise? Seja uma situação de segurança ou até uma situação de encontro com alguém, ou para caminhar por aí pela cidade com outras mulheres, é muito difícil caminhar por um longo período com um sapato desconfortável. A roupa desconfortável impede que a mulher se manifeste livremente e reforça que a mulher deve ser uma vitrine para os homens, uma vitrine associada ao erotismo, pois essas roupas em geral também ressaltam os aspectos físicos da mulher, reforça que a mulher deve sempre expor o seu corpo e que ela será valorizada por conta da exposição corporal e não por conta da exposição das suas ideias.
A questão corporal vai além da roupa, há as joias e adereços e também a maquiagem, que é a pintura facial que se associa muito às mulheres. Há também a remoção dos pelos, no Brasil, inclusive, há uma forte imposição para que as mulheres removam os pelos corporais e isso está cada vez mais abusivo, pois a cada ano se avança mais no território corporal das mulheres, definindo quais pelos devem ser arrancados. Atualmente, há uma noção muito forte que todos os pelos do corpo – menos o cabelo e a sobrancelha – devem ser arrancados por completo. É algo que chama muito a atenção, pois as únicas pessoas que não tem pelos, na sua maioria – existem pessoas que não possuem pelos devido a questões hormonais, há também grupos populacionais no mundo com diferentes quantidades de pelos –, são as crianças. Os pelos corporais aparecem um pouco mais adiante na vida. Então, além de obrigar que mulheres se adéquem a um estado corporal que as associa à objetificação sexual, se reforça que devem ter também uma estética de bebês, de criança, o que reforça o pensamento da pedofilia, inclusive, pois associa uma pessoa adulta ao erotismo e também à infância. É uma mistura muito complexa de fatores que vai se aprofundando na violência contra os corpos das mulheres e isso faz parte desse primeiro tópico da conversa, que é a feminilização.
A feminilização, a partir desse ponto de vista, é um processo de violência contra as mulheres, toda essa questão corporal abordada sobre a associação ao erotismo.
Há também a questão do estupro e da prostituição, que é também uma exploração sexual, uma violência sexual contra as mulheres – hoje há um debate grande sobre isso, há divergências -, mas, enfim, eu defendo essa visão da prostituição, sim, enquanto uma exploração, ao menos em relação ao contexto da maioria das mulheres, se é que podemos pensar a prostituição como uma opção, ainda assim seriam talvez poucas mulheres ou grupos que reivindicam essa questão. Estou pensando no contexto histórico, no contexto da maioria. Seria possível pensar a exploração como uma opção? É um debate complexo também. São várias questões, inclusive, não se vê a prostituição dos homens em massa como a das mulheres, ou seja, é uma questão também da feminilização dos corpos, da violência contra as mulheres, de colocar a mulher em um espaço de sexo, longe da política, um espaço do sexo associado à violência. A feminilização vai se desdobrando.
A feminilização seria o impedimento das mulheres enquanto seres políticos e a obrigação de que elas sejam seres meigos, dóceis e que não apresentem perigo para o sistema de dominação dos homens, pessoas que aceitam as regras e que devem aceitar os papéis definidos pelos homens. Reforço novamente que nas diferentes culturas há nuances, porém pode-se observar uma estrutura comum nas sociedades que perpassa por esses temas.
Essa seria um pouco da ideia de feminilização dos corpos enquanto um processo de violência contra as mulheres.
Voltando à ideia inicial quando falei que em 2015, 2016 eu pensava sobre esses temas. Eu pensei “Bom, então as mulheres são feminilizadas e existem mulheres não feminilizadas”. Nesse caso, eu pensava sobre as mulheres que estão lutando contra essas ideias referentes a comportamento e estética, esse contexto que reforça que mulheres devem ser subordinadas aos homens. De um tempo pra cá, eu já venho repensando essa ideia, pois entendo que todas as mulheres são feminilizadas, ou seja, todas passam por esse processo de feminilização que obriga todas elas a não serem seres políticos. Logo, é muito difícil afirmar que uma mulher não seja feminilizada. Nesse sentido, eu venho repensando já esse conceito que eu propus naquele momento e hoje eu penso em “mulheres assertivas” em vez de pensar em “mulheres não feminilizadas”.
Assertividade
Caminhando então para o segundo tópico da conversa: o que seria a assertividade? A assertividade é a habilidade de se colocar em público, de se colocar no coletivo, de tomar decisões, de interferir no processo coletivo, a habilidade de dizer sim quando você quer dizer sim e dizer não quando você quer dizer não, de propor, de interferir, de, enfim, manifestar a sua opinião, a sua vontade, a sua necessidade, o seu desejo etc. A assertividade é uma característica importante no processo político porque o processo político demanda o debate, a conversa, a relação entre as pessoas, por isso é importante que todas as pessoas desenvolvam assertividade para que possamos conversar, resolver problemas, propor soluções.
Então, eu diria que, quando as mulheres estão lutando contra o processo de feminilização, elas estão construindo a assertividade. Muitas vezes se pensa em “mulheres femininas e não femininas”, um pensamento social de um tempo atrás. Depois veio, na minha linha de construção teórica, o “feminilizadas e não feminilizadas”. Hoje eu reformularia, eu falaria que mulheres, todas nós, passamos por esse processo de feminilização, então eu falaria em “mulheres assertivas e não assertivas”, talvez. Os conceitos são sempre insuficientes, mas é difícil também afirmar que existem mulheres não assertivas, é preciso um nível de assertividade para todas as pessoas para que sejam tomadas decisões e para viver.
As mulheres que estão questionando – não apenas no feminismo, mas em todos os movimentos e grupos na história que se colocaram contra os regimes de dominação – vêm de várias formas desenvolvendo a assertividade, que significa lutar contra a feminilização dos corpos. É uma questão que engloba vários campos, tanto o campo do comportamento, o campo estético, quanto o campo coletivo de relações, do trabalho, da família, na rua etc. Essa reflexão é mais breve, pois já está complementada com o primeiro tópico.
Pensando então as relações entre homens e mulheres e entre mulheres e mulheres. Observamos que há uma dificuldade imensa da sociedade em aceitar mulheres assertivas em vários campos. Muitas vezes se aceita que a mulher seja assertiva em determinado campo da vida, mas não em outro. Por exemplo, a questão da estética, da vestimenta, do comportamento e da postura corporal é uma questão que a sociedade e as pessoas relutam em aceitar mulheres que questionam esses códigos da violência. A mulher que se recusa a eliminar os seus pelos, a usar uma roupa desconfortável é agredida pela sociedade, punida por realizar tal questionamento. Há uma gama de violências e punições dessas mulheres, desde violência psicológica nos vários espaços da sociedade, até violência física e sexual como uma punição pela resistência, pela luta contra o sistema de dominação.
Os homens têm muita dificuldade em aceitar porque eles então vão sendo socializados – todas as pessoas vão sendo socializadas, mas os homens enquanto elementos dominantes – a entender as mulheres como seres sexuais. E quando eles se deparam com uma mulher que é mais parecida com eles – no sentido da assertividade, de se colocar, de participar das coisas, de estar junta querendo decidir e propor e não como um objeto a ser observado, como uma vitrine – isso causa um desconforto, uma revolta. Muitas vezes esse homem se volta contra essa mulher, punindo-a por sair do local que ele a designou enquanto grupo. Os homens se relacionam em grupo, eles reforçam o comportamento deles em grupo.
Pensando também brevemente sobre o relacionamento entre mulheres, isso ocorre também entre mulheres, em ambientes feministas, entre mulheres lésbicas e assim vai, muitas vezes há rechaço contra mulheres assertivas, que se colocam e propõem. Muitas vezes as mulheres acabam – não sei se é a melhor palavra – reproduzindo e afirmando alguns valores desses, por mais que sejam espaços também de questionamento dos modos de dominação, às vezes essa questão da violência psicológica, que é uma violência menos óbvia, acaba ocorrendo. Mulheres violentando mulheres, mulheres que não admitem mulheres assertivas e acabam cotidianamente tentando sufocar essa manifestação da assertividade.
Reflexões do livreto “Perspectiva Feminista Movimento Feminista e Movimento de Mulheres no Brasil, uma introdução”
Eu queria finalizar com uma leitura. Eu escrevi um livreto em 2019, eu vou ler para vocês alguns trechinhos.
“Perspectiva Feminista, Movimento Feminista e Movimento de Mulheres no Brasil, uma introdução”[2]. É um livreto de 40 páginas e ele está no meu site palavraemeia.com, tem duas versões, tanto a versão gratuita, você pode fazer download ou você pode adquirir também, no site. Eu vou aqui na página 17, que essa página vai falar um pouco sobre esses temas que eu falei, no item “Conceitos”:
“A tríade
Observa-se três noções importantes e recorrentes no que se refere ao entendimento do que é ser
mulher nas sociedades. Essas noções estão difundidas entre homens e mulheres, sendo reproduzidas
por ambos os grupos, muitas vezes com significados diferentes. O conceito “mulher” se desdobra em
três elementos, na língua portuguesa brasileira:
1- Pessoa do sexo feminino (fêmea da espécie humana)
2- Mulher
3- Pessoa feminina
Essas três noções possuem cada qual seu correspondente:
1- Femeidade
2- Mulheridade
3- Feminilidade
Destrinchemos cada uma delas.
A pessoa do sexo feminino, que experiencia a femeidade, é aquela que, desde a fecundação (encontro do óvulo com o espermatozóide), se constitui geneticamente como “XX” e então nasce com características corporais específicas dessa condição. Ao longo de sua vida produz de forma autônoma substâncias, como, por exemplo, os hormônios, óvulos, sangue uterino etc. Essas
substâncias realizam a manutenção desse corpo, reproduzindo-o com o passar dos anos, em suas
diferentes fases de vida. As características são primárias e secundárias e se transformam ao longo
dos anos, em termos de intensidade, velocidade ou mesmo cessar de substâncias em certo momento.
Essas fases e intensidade ou mesmo existência de certas características variam de pessoa do sexo
feminino para pessoa do sexo feminino.”
Em seguida, há um parágrafo que irei pular, que aborda a questão da linguagem e diferenças entre o português e o inglês.
“O conceito “mulher” e, logo, a experiência da mulheridade, deriva tanto da realidade enquanto
pessoa do sexo feminino como das construções sociais e históricas associadas às mulheres. Essas
ocorrem tanto a partir das experiências entre mulheres, como a partir das construções sociais e
históricas advindas das experiências entre mulheres e homens, ou seja, a partir do contexto de
violência patriarcal, já que nos espaços mistos os homens se impõem. Algumas autoras optam por associar o termo “mulher” predominantemente à sua realidade genética, e outras, à realidade
socialmente construída entre mulheres, ou então àquela socialmente construída através de conceitos
patriarcais. Outras ainda, defendem o termo “mulher” como uma mistura dessas três associações.
Socialmente, porém, são essas três associações que definem e constroem a experiência das
mulheres. Optar por enfatizar uma ou outra associação significa interpretá-la como fundamental,
estruturante ou definidora da realidade de ser mulher, tornando as outras associações secundárias.
“Feminilidade” é a experiência socialmente construída a partir da interpretação patriarcal sobre
como deveria ser uma mulher. Esse conceito está associado tanto às pessoas do sexo feminino
como ao conceito “mulher”. Entre mulheres, há também uma interpretação que associa o termo
“feminilidade” ao de “femeidade”, ou seja, “feminilidade” seria a experiência de pessoas do sexo
feminino enquanto pessoas do sexo feminino em seu contexto social, seja individual ou coletivo.
Muitas vezes essa última interpretação deriva de conceitos do pensamento patriarcal, resultados de
milênios de impedimento das habilidades políticas e assertivas das mulheres em favor de suas
habilidades acolhedoras, resultando em um pensamento híbrido, mas que, infelizmente, gera
confusão nos círculos de mulheres. Segundo o argumento biológico, ser gentil ou educada faria
parte de um comportamento naturalmente acolhedor que, segundo algumas mulheres, está associado
de forma natural à mulher devido à sua capacidade reprodutiva. Linhas de pensamento contrárias,
defendem que a possibilidade de gerar uma vida e nutri-la nos primeiros meses de vida não
corresponderia à uma personalidade necessariamente acolhedora e delicada da mulher, até porque
nem todas engravidam ou cuidam de filhos ou pessoas. A mescla dos pensamentos que associam
acolhimento ao aspecto natural da mulher com os pensamentos patriarcais é observado na
exigência social da feminilidade que corresponde à docilidade e, acima de tudo, passividade, não-
assertividade. A não-assertividade, travestida de acolhimento, existe para que a masculinidade, ou
seja, a assertividade associada à violência tenha espaço para existir. Ou seja, constata-se que a
feminilidade existe apenas enquanto oposto necessário da masculinidade, dentro do pensamento que
define a feminilidade enquanto derivação necessária da experiência da pessoa do sexo feminino e
associada de forma também necessária à construção social patriarcal que se faz desse sexo. As
características associadas às mulheres passam a ser definidas pela não-assertividade: o não-
enfrentamento direto, passividade, entre outras. A delicadeza e acolhimento são definidos a partir da não-assertividade, minando a possibilidade de imaginarmos acolhimentos assertivos, por exemplo. Também existe a teoria que defende que a feminilidade deriva de forma necessária da experiência do sexo feminino em si, de forma genética ou essencial, sem qualquer relação com a construção social do masculino, mas, ainda, associando-se como oposto necessário ao masculino que haveria nos homens também de forma genética e essencial. Há também as que defendem que a feminilidade é uma construção social tal que existe apenas no social, podendo ser reproduzida ou observada em homens. Há também as que afirmam a feminilidade seria uma essência, podendo ser encontrada em qualquer pessoa. A perspectiva aqui defendida é que a feminilidade é uma construção social associada às mulheres, construída pelos homens e que violenta as mulheres.
Tanto a delicadeza quanto a agressividade não são resultado de características genéticas, ou seja,
são estados ou expressões que podem ser encontradas em todas as pessoas, em função de situações
do cotidiano. Tanto homens quanto mulheres manifestam momentos de delicadeza e momentos de
agressividade ao longo de suas vidas. Porém no contexto patriarcal, é regra tácita – e em muitos
lugares e épocas, institucionalizada através de seus desdobramentos na regência da vida social – que
a delicadeza fique a cargo das mulheres e a agressividade, dos homens. Então, a agressividade se
desdobra em violência e a delicadeza, em passividade. Esse sistema de ações e significados vem
sustentando o patriarcado em diversas sociedades ao longo dos últimos milênios, produzindo
contextos de alarmante violência contra as mulheres, ainda que sejam concomitantes à existência de
processos onde as mulheres exercem-se enquanto sujeitos políticos. Porém pode-se afirmar que a
violência contra as mulheres predomina, como um alicerce estruturante do regime patriarcal.”
Então, é isso. Por hoje é só e entre em contato para quem quiser trocar mais ideias. Eu vou deixar meu e-mail aqui. Um abraço e até a próxima.
Artigo da seção Falas escrito por Daniela Alvares Beskow
15 de setembro de 2023
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NOTAS
[1] Fala “Feminilização e assertividade” de Daniela Alvares Beskow publicada em 10 de agosto de 2021 no Youtube e Instagram: https://www.youtube.com/watch?v=2Lb0iMoFxz0&t=54s e https://www.instagram.com/reel/CSamP_3H1hB/
[2] “Perspectiva feminista, movimento feminista e movimento de mulheres no Brasil”, livreto que publiquei em 2019. Acesse aqui: http://www.palavraemeia.com/2019/03/31/perspectiva-feminista-movimento-feminista-e-movimentos-de-mulheres-no-brasil-livreto-5-marco-de-2019/
BIBLIOGRAFIA
BESKOW, Daniela Alvares. Perspectiva feminista, movimento feminista e movimento de mulheres no Brasil. Palavra e Meia, 2019, Disponível em: http://www.palavraemeia.com/2019/03/31/perspectiva-feminista-movimento-feminista-e-movimentos-de-mulheres-no-brasil-livreto-5-marco-de-2019/
FEMINILIZAÇÃO… Feminilização e assertividade [S.l.:s.n], 2021. 1 video (41m). Publicado pelo canal Daniela Lab. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=2Lb0iMoFxz0&t=54s Acesso em 15 de setembro de 2023