Olhe para trás

É recorrente a ideia – em geral, em forma de aconselhamento – de que pessoas que em algum momento foram desrespeitadas não deveriam refletir sobre o ocorrido e apenas seguir em frente, não olhar para trás. Não olhar para trás significaria não dedicar tempo de pensamento e entendimento sobre o fato, se afastando dele simbólica ou emocionalmente ou, ainda, materialmente, na forma de pessoas ou contextos. Seguir em frente seria a construção de um caminho que refaz o ser individual, em contrapeso ao ataque sofrido no passado.

Sair andando e abandonar o passado – pensando-se que dessa forma se livra do problema – é também abandonar a si, pois o atual é porque o passado foi. Presente é passado, não há outra equação possível na linha do tempo na forma como a experenciamos na realidade existente. O corpo presente é resultado direto do passado, as consequências presentes existem. Olhar para elas e investigá-las é uma escolha que se apresenta.

Andar para longe da violência é uma escolha e por si só não é abandono. É preciso se afastar da violência material, mas, sem deixar de olhar para o que passou e se debruçar de forma atenta e disponível. Assim, constrói-se um caminho de entendimento de si, dos outros e do todo e também memória e estruturas sólidas do corpo presente, que são cientes dos fatos e, a partir do conhecimento, pode-se desenvolver possibilidade de escolha junto aos novos contextos materiais que se apresentam.

Não olhar para trás é negar a própria história, é alienar-se de si e da rede material que nos cerca. A falta da percepção apurada sobre o contexto – o que inclui a análise em detalhes sobre o passado, já que contexto atual é resultado direto do contexto passado – impossibilita a ação plena sobre a estrutura presente.

Somos tudo o que fizemos e tudo o que ocorreu no percurso de nossas vidas. Somos aquilo que ocorreu diretamente e indiretamente. Somos contexto, história atual e passada, elementos dentro das complexas redes de sociabilidade. Somos sujeitos e sujeitas sempre, tendo sido vítimas ou não. Continuaremos sendo e apenas seremos plenas e plenos se nos entendermos e entendermos o que nos cerca de forma depurada e analítica, o que inclui entender o caminho percorrido e construído até o momento presente.

Estimular pessoas, especialmente mulheres, que não olhem atentamente para as violências que sofreram e para as pessoas que cometeram essas violências é incentivar a conformidade com a violência, a aceitação e a normalização da violência. Afinal, se não se reflete sobre situações de violência e se promove uma cultura onde pessoas não olham para trás, não nomeiam situações, abandonam a si mesmas e possíveis outras vítimas também deixadas para trás, gera-se um ambiente propício para que mais violências continuem a ocorrer. Se todos estão fingindo não ver o que está acontecendo ou o que aconteceu, situações semelhantes continuarão a ocorrer com a mesma pessoa ou com outras pessoas. Fingir que nada aconteceu baseada na promessa falsa de um futuro que “começa do zero” não irá resolver situação alguma, tampouco a vida futura da pessoa que segue em frente de forma descompromissada com sua própria trajetória.

Siga em frente, mas volte se for preciso. Siga em frente, mas pare, vire para o lado, olhe para cima, perceba o que está em baixo. Siga em frente, pause e olhe para trás. Continue seguindo em frente, sendo si mesma, o passado ocorrido, o passado entendido e o presente em contínua construção.

Siga em frente, pause e olhe para trás.

Texto curto da seção Breves de autoria de Daniela Alvares Beskow

27 de agosto de 2023

Palavra e Meia Semanal

Acompanhe: @_palavraemeia

Em breve, campanha de assinaturas!