A reforma eleitoral de 2023 que retira direitos

É estarrecedor. Em pleno 2023, foi votada na Câmara Federal, no dia 14 de setembro, projeto de lei que retira direitos políticos de mulheres no processo eleitoral, além de enfraquecer mecanismos de controle de gastos de campanha, o que favorece a corrupção, e de retirar direitos políticos das pessoas negras. Em breve será votado nesse mesmo espaço legislativo a seção do texto que anistia partidos políticos que não cumpriram as regras relativas às cotas nas últimas eleições. A maioria foi composta por partidos de esquerda e direita, incluindo o Partido dos Trabalhadores (PT) e o Partido Liberal (PL). De 456 votantes, 367 votaram a favor da retirada de direitos e apenas 86 votaram não.

Uma das alterações diz respeito a reserva de vagas para candidaturas de mulheres, que atualmente define o mínimo de 30% para cada partido. O texto aprovado pela Câmara propõe que a obrigatoriedade da porcentagem seja aplicada apenas em federações, que são conjuntos de partidos. Dessa forma, o partido individualmente estaria desobrigado de cumprir a regra, caso outros partidos de sua federação cumprissem, gerando uma possível situação de partidos sem nenhuma candidata mulher ou com número ínfimo de candidatas mulheres – o que não é impossível de ocorrer, tendo em vista o histórico brasileiro de pouquíssimas candidatas e eleitas para todos os cargos representativos do país.

Por que essa proposta de alteração enfraquece a política de inserção de mais mulheres na política? Pois a regra para que cada partido registre um mínimo de candidaturas mulheres promove um efeito cadeia na estrutura e ação partidária no que diz respeito à participação de mulheres no seu cotidiano de lideranças. Para que um partido formalize a candidatura de uma mulher é necessário que ele siga outras regras: destinação de pelo menos 30% dos recursos de campanhas para as candidatas mulheres ou de forma proporcional, no caso de mais de 30% de candidaturas, e mínimo de 30% de tempo de campanha no rádio e na TV. Além disso, para lançar candidaturas efetivamente concorrentes, os partidos devem investir tempo, estratégia e apoio coletivo de forma ininterrupta às mulheres do partido de forma a estimular suas candidaturas durante todo o cotidiano partidário – há um parágrafo que versa sobre o assunto na proposta de texto aprovado pela Câmara no último dia 12, inclusive. Não se trata apenas de um número final de 30% em momentos eleitorais, e, sim, de um processo de estruturação de partidos em seu cotidiano para que fortaleçam mulheres e viabilizem candidaturas e potenciais eleitas. A cota é o resultado de um processo que deve ser realizado anteriormente, pois candidatas apenas têm o potencial de serem eleitas caso tenha existido um longo processo anterior de projeção das figuras políticas e de inserção enquanto liderança dentro da estrutura partidária. Há um processo histórico a ser reestruturado. Importante lembrar que não precisaríamos de leis que obrigam a uma cota partidária caso os partidos voluntariamente se comprometessem com inserir mulheres em sua estrutura partidária e com o lançamento de candidatas, realizando o esforço devido para que sejam eleitas. A lei existe porque os partidos não vêm cumprindo seu dever ético e democrático ao longo da história e, logo, funciona como uma medida de reparação e ajuste de direitos.

Qual é o recado que a Câmara Federal passa para partidos e população ao aprovar o texto antidemocrático? Que a luta de décadas realizadas por mulheres para que tenham direito à política pode ser destruída de um dia para o outro em função de interesses e acordos eventuais de partidos e políticos. Que partidos têm a liberdade de não registrar candidaturas de mulheres, ainda que exista uma lei que exija a existência dessas candidaturas, ou seja, que leis podem ser alteradas de forma a não mais garantirem os direitos inicialmente reivindicados.

A alteração da legislação no tocante às cotas para mulheres na política interrompe um longo processo de garantias democráticas e direitos políticos para as mulheres. As próximas leis que versarem sobre promoção de candidatas mulheres nas eleições devem incidir sobre a inserção de líderes mulheres no cotidiano partidário prévio às eleições, pois é esse processo que garante a eleição de candidatas ou candidatos. Ele é constituído de inúmeras ações que inserem candidatos e candidatas na sociedade e nas redes de visibilidade, negociação e construção coletivas de propostas para a sociedade. Tendo em vista que os partidos não estão construindo esse processo de maneira igualitária entre homens e mulheres, entre pessoas brancas e pessoas negras e indígenas, e assim por diante, esse processo há que ser legislado. Se os grupos dominantes que controlam recursos e processos na sociedade não estão espontaneamente cumprindo deveres e democráticos, é necessário que a lei intervenha para garantir cidadania plena a todas as pessoas e isso inclui direitos políticos e a possibilidade de se candidatar e vencer uma eleição. Há de se seguir adiante com direitos e não retroceder em leis já conquistadas.

Não bastasse a pressa e a falta de construção junto à sociedade de temas tão importantes para a democracia brasileira, as próprias propostas de alteração das leis são absurdas, pois retrocedem em direitos conquistados. Ao invés de estarmos debatendo melhorias e avanços para a inclusão de fato de mulheres e pessoas negras na política, estamos testemunhando representantes votarem contra a população, retirando direitos e obstaculizando o acesso aos cargos legislativos.

A aprovação de projetos de lei que retrocedem em direitos é uma distorção da democracia representativa. Representantes não são eleitos para decidirem “o que querem” e nem “o que podem”, em função de conjunturas temporárias de governo, mas, para decidirem em nome do planejamento e de políticas públicas democráticas para o país através de uma perspectiva estatal e duradoura.

Coluna da seção Breves de autoria de Daniela Alvares Beskow, escritora e cientista política

23 de setembro de 2023

Palavra e Meia Semanal

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