A omissão também é responsável pela violência

Tomar ciência do que está acontecendo em Gaza e em Israel, em outubro de 2023, e ouvir as cobranças de inúmeros políticos, pesquisadoras, ativistas e jornalistas em relação à falta de posicionamento da comunidade internacional em relação às violações de direitos humanos perpetradas pelo Estado de Israel contra o povo palestino nas últimas décadas leva à seguinte pergunta: que outras violências que ocorrem ou que vêm ocorrendo em outros países e territórios estão sendo toleradas pela comunidade internacional atualmente? Ou até mesmo dentro de um próprio país?

A comunidade internacional é aquela que está ao redor de um país e, enquanto tal, compreendida como a zeladora de princípios que protegem a vida naquela região, uma juíza de fora capaz de intervir em casos que a correlação de forças internas não permite que pessoas ou grupos reajam a violências ou estejam livres de violências. No entanto, não há consensos internacionais sobre todas as práticas que envolvem a existência humana e, ainda que existam tratados, convenções e órgãos internacionais pautados no estabelecimento de concordâncias, as histórias de cada país impelem a entendimentos diversos sobre um mesmo tema. Este é o obstáculo que se coloca à frente dos espaços internacionais de fixação de regras: não há entendimentos comuns sobre temas fundamentais à vida cotidiana, como a violência. Determinadas situações toleradas em certos países são consideradas violações de direitos em outros, constituindo um desafio o enfrentamento de algumas discordâncias nas instâncias internacionais de debate. Essa é uma questão, porém não a principal desta reflexão.

Países – e pessoas – deixam de se posicionar por uma diversidade de fatores. Um dos principais é a ausência de disposição com o comprometimento que posicionamentos demandam. Defender ideias, em termos de instâncias internacionais de definição de direcionamentos, determina também a realização de ações. Defender um pensamento é propor também uma ação e essa, por sua vez, está interligada a redes de conexões entre países, relacionando instâncias econômicas, sociais, militares, tecnológicas, ideológicas. Definir por determinada ação, em especial aquela que questiona e condena eventos e processos de um determinado país, é decidir por questionar todas as relações que se estabelecem com tal país, colocando em risco fluxos entre esses dois Estados. Parcerias, compras, vendas, processos que garantem também certezas e estabilidades mútuas. Frequentemente opta-se por não questionar para que seja mantida a manutenção de determinado contexto. Esse formato de relação e não questionamento coloca em xeque, porém, a defesa da manutenção da vida em outros países em determinadas situações, como, por exemplo, as guerras, que é um dos contextos mais intensos de violações de direitos humanos. Contextos prolongados de violação de direitos como genocídios diluídos no tempo, a obstaculização sistemática de acesso a recursos, contextos de precarização extrema da vida em espaços de encarceramento, segregações espaciais não formalizadas porém existentes e outros exemplos são também contextos que ferem a vida e com frequência não são questionados por instâncias internacionais.

O atual embate entre o Estado de Israel e as forças armadas da Palestina, e com mais evidência, o ataque do exército de Israel aos civis palestinos desarmados visibilizam ao mundo que esse não é um evento isolado. São décadas de violação de direitos da população palestina por parte de Israel, que estabeleceu uma prisão ao ar livre como território de moradia palestina após expulsar paulatinamente esse povo das terras que ocupavam anteriormente. O Estado de Israel regula a entrada de alimentos, combustível e controla até mesmo a distribuição de água, limitando, inclusive, o desenvolvimento da agricultura da região. Por que a comunidade internacional recentemente não vem se posicionando veemente contra essa segregação territorial e violação de direitos dos palestinos? Quais interesses ou falta de interesses têm estado em jogo nas últimas décadas para viabilizar tamanha permissão internacional para essa extensa duração da violência?

Essas perguntas nos levam a outras, a primeira, em relação ao Brasil, devido a algumas semelhanças no que diz respeito à precarização da vida em áreas de guetos territoriais nos espaços de favelas, entendidas também como comunidades ou assentamentos urbanos. As favelas são territórios onde predomina diversos violações de direitos, tanto no que diz respeito à vida coletiva quanto individual. São décadas em que o Brasil testemunha o crescimento desse tipo de organização territorial, em vários estados do país, muitos entregues ao poder de milícias e tráfico. Frequentemente, a população de favelas se vê no meio do fogo cruzado entre forças estatais e forças armadas privadas, resultando em inúmeras mortes e insegurança diária da vida. E então surgem as perguntas: por que o Estado brasileiro tem tolerado esse contexto de violação de direitos que impede cotidianamente a realização plena de direitos para seus cidadãos? Qual é o momento em que uma emergência se torna uma situação tolerada de violação? Por que se torna aceitável que direitos sejam violados diariamente? Seria porque a situação das pessoas que moram em favelas se caracteriza pelo mínimo de direitos? Por que o mínimo – e em muitos casos, a ausência total de direitos – é aceito pelo Estado? Por que a violação de direitos nas favelas não está sendo considerada uma emergência de direitos humanos? Quais são os interesses em jogo que impedem que poder e público e sociedade se manifestem de forma incisiva frente a esse contexto de violação? A sociedade e o Estado se acostumaram a entender que não deve ser problematizado que alguns grupos tenham, na prática, menos direitos do que outros. Esse processo de inferiorização de seres humanos, devido ao entendimento discriminatório sobre pertencerem a certos grupos raciais ou sociais tem nome: racismo, classismo, legitimação da exploração, dominação, exclusão. E é urgente que tais violências sejam eliminadas.

As guerras diluídas estão presentes em todos os países. É inadiável a tomada de posição frente a essas guerras. A defesa da vida é urgente e deve vir antes de todo e qualquer compromisso entre dois ou mais países, estados, grupos, pessoas. A vida plena tem a capacidade de suplantar qualquer que seja o benefício de não se posicionar frente a violências, pois nutre todas as possibilidades de abundância e multiplicação de organização, certezas, garantias, vida individual e coletiva. Todo o pacto pelo silenciamento frente a violências gera nada mais que a perpetuação da violência. O posicionamento arrisca relações, porém gera relações. Na balança, se a vida está ganhando, se está no caminho certo. Nada vale a pena quando a vida está em risco.

Texto curto da seção Breves de autoria de Daniela Alvares Beskow, escritora e cientista política

19 de outubro de setembro de 2023

Palavra e Meia Semanal

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