Incitação ao estupro em hino da Atlética da medicina da Unisa?

Incitação ao crime é crime. A pena para a incitação ao crime de estupro, assim como a incitação a qualquer crime, é de 03 a 06 meses de prisão ou multa de acordo com o artigo 286 do Código Penal (1940). A letra do hino da Atlética de Medicina da Universidade Santo Amaro (Unisa) soa explícita na incitação ao crime de violência sexual. De acordo com a Folha de São Paulo (2023), a letra é a seguinte:

Xá! Vasca!
Xá! Vasca!
Xavasqui! Xavascá! Xavasqui e acolá!
Enfia o dedo nela que ela vai arreganhar!
O quê? Arre-ga-nhar!
Na rima do pudendo [vulva]
Eu entrei mordendo!
É a Med Santo Amaro que está te fodendo!
Medicina! Santo Amaro! Ô!”

Incitar alguém a algo é estimular, encorajar ou incentivar que determinadas ações ou atos sejam realizados. A letra acima explicitamente se encaixa nessa definição ao defender que pessoas “enfiem o dedo” na região íntima das mulheres, acima classificada como “xavasca”, uma das nomeações populares para a vagina ou a vulva, nessa música utilizada com uma conotação pejorativa entendida dentro de uma situação de ataque sexual às mulheres. Além de incitar que se insira o dedo na vagina de uma mulher, se incentiva que o faça de forma a destruir tal órgão, ação identificada no termo “arreganhar”, que é entoado mais de uma vez. Em seguida, se descreve uma situação em que o protagonista da ação teria novamente violentado fisicamente a vítima, ao morder suas partes íntimas. E conclui com o fim do ato, que estaria sendo praticado pelo curso de Medicina da Universidade Santo Amaro, que estaria “fodendo” as mulheres, sugerindo, também, uma violência coletiva. A situação descrita no hino soa como uma situação de estupro, não apenas pelos termos escolhidos, como pela falta de indício à uma relação sexual consensual no texto, dificilmente podendo haver dúvida sobre o teor das palavras. Ademais, é completamente inadequada para o ambiente esportivo, que não é um ambiente de teor sexual, para aqueles que venham a defender que a música apenas descreve uma relação sexual intensa.

Chama a atenção o fato de a provável incitação ao estupro estar presente na música de uma entidade estudantil responsável por organizar eventos esportivos para os alunos e alunas. Tal hino provavelmente é entoado em grupo em encontros e competições, o que significa que a provável incitação ao crime sexual deve ter sido praticada diversas vezes, não apenas incentivando outros colegas estudantes a realizar tal crime, mas constrangendo repetidas vezes as colegas estudantes e todas as mulheres presentes nos encontros promovidos por essa entidade onde houve o canto dessa letra. Constrangimento que pode também ser entendido como uma ameaça, agravada pelo fato de provavelmente estar sendo entoada por grande quantidade de homens aos gritos, como é comum em ambientes esportivos.

Qual a sensação de segurança ou a segurança de fato das mulheres nesses espaços que deveriam ser ambientes de alegria, celebração e lazer? Um espaço esportivo que, em vez de promover plena segurança para todas as pessoas presentes, é local para naturalização da ideia de violência sexual contra as mulheres presentes e mulheres em qualquer outro local.

É ainda mais chocante o fato da autoria do hino ser de estudantes de medicina, pessoas que supostamente serão futuros profissionais da saúde, as quais deveriam honrar com o respeito ao corpo do outro e da outra como regra primordial da prática profissional. Ao se deparar com o conteúdo dessa letra, a sociedade se pergunta como será a prática profissional desses futuros médicos ao se deparar com uma paciente mulher, muitas vezes nua ou seminua em procedimentos cirúrgicos ou exames. Profissionais que, quando alunos, entoaram hinos de tamanha violência contra as mulheres.

A Universidade Santo Amaro, na figura de seus representantes, professores e administradores, ao não se opor a tais prováveis incitações ao crime de violência sexual, estaria apoiando tais atos? De que forma a indiferença pode funcionar como incentivo? A universidade estaria sendo cúmplice de tais violências, já que provavelmente cede espaço e estrutura para a entidade estudantil e os eventos que promove?

São perguntas que a sociedade tem feito nos últimos dias, desde que as informações sobre eventos esportivos organizados por estudantes do curso de Medicina da Unisa vieram à tona, incluindo um evento onde estudantes homens abaixaram as calças – alguns tocaram as próprias genitálias expostas – em meio à quadra onde jogavam estudantes mulheres em um torneio. Tais imagens em video circularam nas redes sociais. Há também um provável crime de importunação sexual. A importunação sexual, de acordo com a lei 13.718 de 2018, seria:

“Praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro.”

A letra da Atlética do curso de Medicina da Unisa, descrita acima, retrata pensamento misógino que classifica a mulher através de suas partes íntimas – e, logo, de forma a objetificá-la sexualmente – e utiliza-se de termos pejorativos e que incitam a violência sexual contra mulheres. A estimativa para os números da violência sexual no Brasil para o ano de 2022 é de mais de 800 mil estupros. De que forma letras de música como essa colaboram para a cultura que incentiva a violência sexual contra mulheres, ou seja, a cultura do estupro?

Enquanto as leis não forem aplicadas de forma severa para pessoas que cometem violências desse tipo, o Brasil seguirá testemunhando quantidades altíssimas de violência sexual, incentivadas socialmente nos ambientes coletivos. É preciso um basta ao desrespeito.

Coluna da seção Breves de autoria de Daniela Alvares Beskow, escritora e cientista política

23 de setembro de 2023

Palavra e Meia Semanal

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Referências

Folha de São Paulo “Hino da atlética de medicina da unisa fala em ‘enfiar dedo’ na vagina para ‘arrenganhar’.

Decreto-lei n.2.848 de 07 de dezembro de 1940. Título IX, Artigo 286

Lei 13.718 de 2018. Art. 2º