As violências originárias do patriarcado[1]

Olá, pessoal, tudo bom? Eu sou a Daniela Alvares Beskow, eu sou escritora, cientista política e artista. Hoje eu quero perguntar para vocês, quais são as violências originárias do patriarcado? Algo é originário quando está no início, no começo, quando está na origem de um processo. Nos últimos anos, eu venho refletindo se as violências no patriarcado ocorrem todas ao mesmo tempo, surgem em rede, surgem ao mesmo tempo, uma fortalecendo a outra, ou se é possível a gente pensar que existe uma violência ou duas que originam as outras.

E o que eu venho pensando então até agora? Eu reconheci duas violências que eu posso entender como originárias, que originam as outras que vêm depois.

A primeira delas seria o fato, o contexto de que os homens percebem como aceitável, como tolerável, como permitido que homens violentem mulheres na sociedade. Então, a partir do momento em que os homens percebem individualmente e coletivamente que essas violências são socialmente aceitáveis, socialmente autorizadas, eles continuam a violentar mulheres. Então, um dos fatores que sustenta a autorização social da violência é o fato de que após as violências não há um processo de questionamento, de revolta contra essas violências, de punição ou de reeducação da pessoa que violenta. A violência ocorre e depois, após a violência, nada ocorre em relação à pessoa que violentou. A vida segue normal.

Podemos perceber isso em vários tipos de violências, tanto as violências físicas, as violências sexuais, que ocorrem muito inclusive nos âmbitos privados, nas casas das pessoas onde homens estupram mulheres, homens violentam fisicamente mulheres, violência psicológica também, até violências econômicas, por exemplo, mulheres que recebem salários menores do que os homens quando realizam a mesma função, ou seja, essas empresas que têm essa política, elas estão realizando essa política e elas não são questionadas, não há uma lei ou, enfim, um posicionamento coletivo que questione essas decisões dessas empresas e que as punam de alguma forma ou que realize um boicote dessa empresa, enfim, que haja uma denúncia pública sobre esse posicionamento, ou seja, os homens estão violentando as mulheres e nada está sendo feito em relação a esses homens, ou quase nada.

Logo, é um processo, é uma estrutura social que sustenta as violências e que eu denomino de “autorização social para a violência”. Então, podemos dizer que a violência originária é esse contexto, é esse contexto que os homens percebem como sendo autorizado, como sendo permitido e como sendo aceitável que homens violentem mulheres.

E uma outra violência originária, a gente pode pensar, o que é o patriarcado? O patriarcado é um regime de dominação onde mulheres estão completamente ausentes ou em pouco número nos espaços de tomada de decisão sobre a sociedade. Logo, podemos pensar que uma segunda violência originária do patriarcado é a própria definição do patriarcado, é a própria ausência das mulheres desses espaços onde se tomam decisões. A partir do momento que as mulheres não estão presentes nesses espaços de decisões, elas não estão decidindo sobre o coletivo e logo não estão decidindo sobre elas mesmas, já que as mulheres fazem parte do coletivo, o indivíduo faz parte do coletivo. Então, quando você não está decidindo sobre si mesma, essa é uma violência, essa é uma violência que origina outras violências. A partir desse momento de não decisão, você não decide sobre mais nada, sobre nada que ocorre no coletivo e que diz respeito a você, à sua vida, à sua existência também.

Podemos então, pensar um exemplo sobre isso que seria a máxima, vamos dizer, da falta de decisão da mulher sobre si mesma, seria o próprio estupro, a violência sexual. A violência sexual é o homem invadindo ao máximo o território da mulher, o território corporal, ou seja, ele chega a ultrapassar esse último território de liberdade, de autonomia, de segurança que é o próprio corpo.

Então, ele se sente no direito de ultrapassar essa barreira, essa fronteira, violentar, invadir esse espaço corporal, invadir o corpo da mulher, ou seja, nesse contexto ele se impõe sobre a mulher. O estupro é uma violência, como toda violência, é uma ação não autorizada. Então, ou seja, a mulher nesse momento não está decidindo nem sequer pelo seu próprio corpo, porque o homem está impondo essa violência. Então, o estupro é algo que a gente observa em todas as sociedades, é um dado lamentável, como todas as outras violências, mas o estupro pensado como essa invasão última da barreira do corpo, tanto o estupro quanto a tortura, que é uma outra violência também que ultrapassa essa barreira material corporal.

Mas, enfim, podemos então, pensar sobre isso, sobre a falta de decisão sobre o todo, que chega até nessa falta de decisão sobre o próprio corpo. O homem, ao não reconhecer a mulher como um ser político, como um ser capaz de tomar decisões, um ser que tem que ser ouvido, ele se sente até mesmo no direito de invadir próprio corpo da mulher, sua própria existência concreta e material.

Sobre a questão de tomar decisões, uma primeira questão é, muitas pessoas colocam essa questão, inclusive, “mas você precisa ser mulher para legislar e criar leis a favor das mulheres? Você precisa ser uma pessoa negra para criar leis que favoreçam, que beneficiem a população negra?” Não, a resposta é não. Em uma sociedade democrática, uma sociedade que valoriza a liberdade, a justiça, o bem-estar, a qualidade de vida para todas as pessoas, basta você ser uma pessoa que esteja tomando decisões que você pode, você tem essa possibilidade de tomar decisões para o bem de todas as pessoas. Porém, o que a gente observa nos regimes de poder, inclusive nos espaços da democracia representativa, é que as pessoas que estão tomando decisões, em geral, vão tomar decisões a partir do seu próprio ponto de vista, do ponto de vista do seu partido, do seu grupo social. Então, a gente observa, sim, na história do Brasil, leis – criadas, na sua grande maioria, por homens – que não favorecem mulheres, que inclusive desfavorecem mulheres ao longo da história.

Pode pensar numa outra conversa sobre esse tema das leis, em específico. Mas, então, numa sociedade melhor do que a atual, a gente pode pensar, sim, que qualquer pessoa que esteja tomando decisão é sua função, enquanto pessoa que toma decisão, decidir em favor de todas as pessoas.

Esse é um primeiro ponto, isso não ocorre. Assim como a gente sabe que no Brasil a maioria das pessoas que estão nos espaços de decisão são pessoas brancas. Então, a gente vê poucas pessoas negras e, ao mesmo tempo, a maioria da população que está sofrendo economicamente, socialmente os danos da discriminação, do racismo, da desigualdade econômica e social é a população negra.

Então, o que a gente observa nos espaços de poder é que, em geral, quem está nos espaços de poder não é a população que está sofrendo com os regimes de dominação. Inclusive, pensando também na questão econômica. Pessoas que estão no poder, que detêm ou meios de produção ou têm uma renda maior, que estão tomando decisão, ou seja, não são as pessoas que estão desfavorecidas socialmente e economicamente. Sempre há um desbalanço entre quem toma decisão e a grande maioria da sociedade. Esse é um ponto. De qualquer maneira, ainda que estivéssemos em uma sociedade mais igualitária e, independente de quem a pessoa for, ela vai tomar decisão em favor de todas as pessoas, é importante também a diversidade de perspectivas, de pontos de vista.

E as experiências sociais que as pessoas têm em função de ser mulher, homem, heterossexual, homossexual, negra, indígena, branca, entre outras. Essas diferentes experiências culturais, sociais e muitas vezes, corporais, biológicas, em alguns casos, como no caso da diferença entre homens e mulheres, por exemplo.

Enfim, é uma rede de diferenças e de semelhanças também. Essas perspectivas diferentes vão originar reflexões diferentes sobre a sociedade. E é importante que, nos espaços da política, haja diversidade, porque a política é o embate, é o diálogo, é a construção a partir da diversidade.

A política não pode existir sem diversidade, o contrário disso não é política, é autoritarismo. Então, de qualquer maneira, é importante que haja representado nos espaços de tomada de decisão, ou no caso da democracia direta, que estejam ali presentes todas as pessoas, todas as pessoas da sociedade decidindo.

Então, essa é a ideia de hoje, breve, e eu gostaria, se alguém quiser continuar o debate, escreva aí nos comentários, se vocês acham que não existe uma violência originária, ou se existe, ou se são essas, ou podem ser outras.

Então, no meu ponto de vista, fechando, a conclusão é isso. Primeiro os homens se sentem no direito, na liberdade de violentar, isso gera todo um sistema massivo de violência contra as mulheres em todas as sociedades, ao mesmo tempo que não há uma reflexão, uma revolta coletiva imediata contra cada uma dessas violências e ao mesmo tempo, mulheres que não decidem sobre o coletivo, logo não estão decidindo sobre todas as outras coisas da sociedade.

Logo, os homens vão se sentindo autorizados a reforçar e cometer várias violências contra as mulheres, além da violência primeira, que seria as mulheres não estarem nos espaços de tomada de decisão. Então, essa é a reflexão de hoje. Um abraço!

Artigo da seção Falas escrito por Daniela Alvares Beskow

Publicado em 05 de setembro de 2023

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NOTAS

[1] Fala de Daniela Alvares Beskow publicada em 05 de junho de 2021 no Instagram @daniela_beskow e Youtube Daniela Lab. Transcrição, revisão e adequação de algumas palavras para a linguagem escrita – mantendo o aspecto original da linguagem informal da fala – e publicação do texto em agosto de 2023 em palavraemeiasemanal.com